Deus existe? Se existe, como se manifesta?
No livro “O enigma da religião”, o teólogo Rubem Alves nos apresenta a perspectiva de sentido para a religião que a fez sobreviver às severas críticas e rejeições feitas, principalmente, por pensadores do século XIX. Tal perspectiva nem de longe passa pela articulação e justificação de uma estrutura religiosa dogmática como a que vigorou durante a Idade Média. Para o teólogo, não há como retomar um modelo de religião já flagrantemente demolido pela Ciência quando esta desvelou a previsibilidade da natureza e nos fez perceber o mundo como algo passível de ser manejado por nós em vez de dependente dos desígnios de Deus. No caso das descobertas de Galileu Galilei, por exemplo, a reação repressora dos eclesiastas ao que poderia ser encarado como uma simples descoberta da Ciência, foi o maior indício de como todo um sistema de pensamento percebeu-se ameaçado de morte. A revelação de que o céu e os astros podem estar acima, abaixo ou ao lado da terra, conforme nossa localização no espaço, bastava para implodir a ideologia que predominou ao longo de toda uma era. O Deus medieval - sustentáculo da estrutura hierarquizante com a qual a Igreja organizava o universo, subindo do nível mais baixo até as esferas no mais alto grau de densidade do ser - foi destronado e posto à margem da realidade do mundo que nos cerca. Além disso, para o teólogo, o Deus morto pela Ciência já transitava por entre nós enfraquecido pelas formas institucionalizadas da religião que, quanto mais racionalizam, teorizam ou ritualizam, no cotidiano, acontecimentos autênticos e originários do passado, mais afastam o homem da experiência do mistério.
No entanto, Rubem Alves
não aceita os pressupostos dos contestadores da religião que defenderam o uso
da razão como o único meio válido de o
homem interpretar o mundo. Segundo Alves, o Iluminismo supervalorizou a
objetividade científica, desprezando a subjetividade onde se formam as
significações humanas. As correntes de pensamento que se destacaram partir do
Iluminismo consideraram a religião um produto da imaginação que deve ser
rejeitada pelo fato de não refletir a realidade, sendo apenas uma expressão dos
nossos desejos. Partindo deste pressuposto que desqualifica a imaginação, Freud
encara a religião como uma forma de neurose coletiva, uma vez que, por meio
dela, o homem nega a realidade objetiva simplesmente porque esta se interpõe
como obstáculo à realização de seus desejos. Para Freud, a religião não resiste
às exigências da razão e da experiência, o que a afasta do interesse do homem
que cada vez mais se realiza como um ser científico.
Rubem Alves revela que a
mesma ideia de religião como algo a ser superado encontra-se em Karl Marx, para
quem a religião não contém nenhuma verdade sendo apenas mero efeito de uma
situação. Para o filósofo alemão, as condições objetivas da vida é que fazem
com que o homem lance mão de mecanismos mentais que o fazem transpor a
realidade de forma ilusória. A religião seria, portanto, uma projeção invertida
do sofrimento gerado pela opressão a que o homem se encontra submetido. É por
isso que, para Marx, o que importa é a transformação da realidade em que vive o
homem para que esta esteja cada vez mais adequada às possibilidades de
realizações de seus anseios, condição que, quando atingida, tornaria a religião
desnecessária. Marx considera a religião
uma via de alienação das consciências pois esta, para não correr o risco
de ser superada, acena com uma impalpável recompensa de plenitude existencial
em outro mundo aos que sofrem com as injustiças derivadas da estrutura social,
em vez de propor soluções que levem ao fim das
desigualdades. A tomada de consciência dos homens a respeito das
estruturas injustas da sociedade teria como consequência fatal a aniquilação
completa das religiões sustentadas por ilusões extra-mundo.
Depois da demolição do
castelo de Deus, Rubem Alves aceita a ideia de que Ele esteja morto mas
ressalva que o assassinato foi cometido contra o deus-ídolo que o homem
construiu como objeto apartado de si e que acabou por se tornar um tirano
voltado contra nós por ser também um sujeito onisciente e onipotente que nos vê
como seu objeto e perscruta todos os recantos de nosso ser. Alves concorda com
Nietzsche ao afirmar que tal morte nos foi benfazeja porque nos abriu um
horizonte de desenvolvimento de nossa própria autonomia, já que nossa condição
anterior de dependência de Deus nos mantinha em um estado de completa atrofia das
potencialidades humanas. Espaços de nossa realização antes obstruídos pela
ideologia religiosa repressora do corpo podem ser agora reconquistados com
atitudes de afirmação da vida. Ficamos mais livres dos limites apolíneos da
forma que massacravam a espontaneidade das manifestações dionisíacas de
vitalidade humana. A imagem de libertação criada por Nietzsche é a da transformação
do camelo obediente que se curvava diante do poder identificado com o sagrado,
num leão capaz de pulverizar o dragão da maldade que o oprimia.
Mas, se o Deus que foi morto não é o Deus
verdadeiro, como este, então, seria? Como defini-lo? Segundo Rubem Alves, a
resposta pode ser encontrada partindo-se de uma valoração positiva da
imaginação como uma das formas fundamentais de operação da consciência, o que
se opõe à tese de Freud que via a imaginação como sintoma de doença, manifestação
da neurose gerada por desejos reprimidos. Para Alves, é da imaginação que
deriva a própria consciência racional pura, descrita por Kant, pois não
encontramos esta como um dado de nossa experiência. Trata-se de uma forma
idealizada de consciência surgida graças a condições históricas bem definidas. Segundo
o teólogo, a mente humana não é capaz de um conhecimento objetivo no sentido
radical do termo. O homem pode até apreender cientificamente a realidade mas não
deixa de definir suas buscas e vislumbrar suas descobertas pelo prisma de seus
anseios, aspirações e desejos surgidos da imaginação.
É a imaginação que nos
alça da condição animal, pois nos liberta das determinações do mundo. Ao
imaginarmos coisas, percebemos que o real sempre nos apresenta uma dimensão
ainda maior que ele, a dimensão do possível. A percepção do mundo dos animais é
limitada à experiência, às sensações. De acordo com Rubem Alves, ao utilizar a imaginação religiosa o ser humano escapa da
condição animalesca, uma vez que esta imaginação é capaz lançar no espaço todo
o sentido do humano, preservando assim seus domínios psíquicos das forças do
caos destruidoras do sentido do universo que criamos para nós. É com esta
criação de sentido que o homem reage à indiferença da natureza que pode reduzir
tudo ao nada, ignorando a existência humana até mesmo ao destruí-la. Assim,
apesar da angústia permanente causada pela ameaça da redução do Ser ao nada, o
homem afirma sua potência para humanizar o cosmos. E o faz com valores que
foram gerados a partir de sua experiência, a partir de sua relação com o mundo que se manifesta para
ele. Sendo a intenção religiosa uma intenção ética, é por meio dela que o homem
é capaz de pensar as realidades que se aproximam de sua utopia. E é dentro
desta consciência das possibilidades e das potencialidades humanas que, segundo
Alves, transita o Deus vivo. Ele se
manifesta por meio de nossa coragem,
esperança e vivência de uma fé que não precisa de Deus como objeto pois
trata-se de uma fé que parte de nós em direção a nós mesmos: a fé no viver espontâneo, na busca livre do
sentido existencial. Inventando sonhos que liberam as potências do real e do
possível e agindo corajosamente na realidade para adequá-la aos nossos projetos,
é assim, que para Rubem Alves, podemos encarnar o Deus vivo.
O teólogo Rubem Alves. |
bom
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