Heráclito
e Parmênides
A unidade na diversidade.
Tudo é um
(hén panta). A afirmação condensa em
três palavras a linha de pensamento que os filósofos pré-socráticos
seguiram na tentativa de explicar racionalmente o universo. Trata-se de uma chave para a interpretação
das teorias desses filósofos que, apesar de suas variadas descrições do
dinamismo cósmico, compartilham de uma mesma tradição, tendo como pano de
fundo para o desenrolar de tal dinamismo uma unidade de onde tudo provém, que a
tudo sustenta e onde tudo se esgota.
A multiplicidade de teorias sobre o cosmos entre os pré-socráticos talvez revele mais sobre a perplexidade e a inquietude destes quanto às transformações físicas que percebemos a todo instante do que, propriamente, quanto a algum resquício de dúvida sobre a existência de uma realidade única. Para eles, esta unidade é dada, praticamente, como certa. O que “incomoda”, portanto, é o vão, o transitório, o perecível do mundo perceptível pelos sentidos, fonte de incertezas e contradições, de aparências que iludem por se mostrarem de forma isolada, particularizada no plano dos entes e nos encobrem o acesso ao que seria a uma verdade eterna e inquestionável.
A multiplicidade de teorias sobre o cosmos entre os pré-socráticos talvez revele mais sobre a perplexidade e a inquietude destes quanto às transformações físicas que percebemos a todo instante do que, propriamente, quanto a algum resquício de dúvida sobre a existência de uma realidade única. Para eles, esta unidade é dada, praticamente, como certa. O que “incomoda”, portanto, é o vão, o transitório, o perecível do mundo perceptível pelos sentidos, fonte de incertezas e contradições, de aparências que iludem por se mostrarem de forma isolada, particularizada no plano dos entes e nos encobrem o acesso ao que seria a uma verdade eterna e inquestionável.
Heráclito
A
afirmação de uma realidade única e absoluta se faz presente até mesmo na teoria
do filósofo que mais valorizou o que seria, supostamente, a negação desta
realidade: o porvir que se mostra na transitoriedade das coisas do mundo,
sempre múltiplas e inconstantes, em permanente oscilação de formas e no
perecimento da matéria. Para Heráclito de Éfeso, colocar em evidência as
transformações que captamos pelos sentidos - em vez de minimizar ou ignorar a
importância desses eventos por considerá-los mera aparência - foi o modo de nos
mostrar que o tudo é o emergente. O constante emergir das coisas que nunca se
fixam, que seguem num fluxo permanente e inesgotável, nascendo ao mesmo tempo
em que morrem é a maneira de ser da realidade única para este filósofo grego. O
devir, portanto, é a própria afirmação desta realidade que pode ser simbolizada
pelo fogo, elemento primordial e unidade que a tudo consome consumindo-se a si
mesma. No plano dos sentidos, iludimo-nos com a sensação de que há alguma
permanência ou imutabilidade das coisas que são. É o que Heráclito quer dizer
em um de seus fragmentos mais célebres: “Não se pode descer duas vezes ao mesmo
rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado
(...)”. A physis, portanto, revela-se
como unidade em permanente mudança, em eterno movimento, instância imutável que
se define, paradoxalmente, como eterna transformação.
Ainda de
acordo com Heráclito, a realidade suprema é a que não se determina em nenhuma
configuração perceptível aos sentidos (não se esgota em nenhuma configuração
ôntica). O filósofo compara o Todo à guerra por revelar-se em seu dinamismo
próprio como luta entre os opostos, um movimento que a tudo abarca e em que tudo
se articula em divergência e convergência. É no fluir constante que se
manifesta o logos. Este dinamismo universal permanece inacessível
ao homem comum, cuja visão se esgota na particularidade das coisas vistas
isoladamente. Este não alcança a compreensão da unidade articulada da realidade
que não se manifesta aos sentidos. Mas este princípio único é inteligível ao
ser humano capaz de pensar para pensar o logos
como o “todo que está junto”, um todo que se faz presente de maneira a revelar
que cada coisa somente é o que é em contínua ligação com tudo o que esta coisa
não é. Assim, totalidade é
indeterminação, pois consegue escapar das cadeias que nos prendem à
particularidade ilusória dos entes. É este o sentido do que nos diz, no
fragmento 89, o pensador de Éfeso: “ser o cosmo, para os acordados, uno e comum
(koinón), enquanto, dentre os que
dormem, cada qual se volta para seu cosmo particular”.
Parmênides
O
pensamento de Parmênides, embora, desde a Antiguidade, seja considerado oposto
ao de Heráclito, compartilha com este a mesma espinha dorsal da tradição
inaugurada por Tales de Mileto. Tradição assimilada e desenvolvida por
Anaximandro que a transmitiu a Xenófanes, mestre de Heráclito e Parmênides. A
professora de Filosofia da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Izabela
Bocayuva, parte da visão de Heidegger para defender a tese de que as teorias dos
discípulos de Xenófanes, em vez de se contraporem radicalmente, a ponto de se
negarem ou excluírem uma à outra, são apenas perspectivas diferentes na afirmação
de um princípio único de toda a realidade.
A estratégia
de Parmênides para decifrar esta realidade suprema é negar a experiência
proveniente do plano ôntico mas não no sentido de desconsiderar sua existência.
Para o pensador de Eleia, esta negação consiste em não tomar o mundo que se
apresenta aos sentidos como aquele em que o todo se esgota, mas sim como fonte
de ilusões e de manifestações de particularismos que encobrem o Ser. De acordo
com o filósofo, o que os sentidos nos revelam é o que, de alguma forma, tenta
negar o todo e afirmar o nada mas tal negação resulta em “fracasso” pois tudo
é, mesmo o que se esforça para negar o Ser. O próprio esforço da negação já é algo inserido no dinamismo da
totalidade. A multiplicidade dos entes, resultado do que seria uma permanente tentativa
de negação do Ser, torna-se uma afirmação deste próprio Ser, ou seja, não há
como escapar do Ser, tudo é e não há o não-ser. Cabe a nós, portanto, evitar
o caminho do engano desprendendo-nos das percepções que nos iludem ao
mostrar-nos apenas a realidade aparente das coisas e que assim nos “tenta” ao
não-ser e nos submerge em uma inconstância ilusória entre o Ser e o não-ser, um
movimento aparente que encobre a imobilidade do Ser. Imobilidade que não quer
dizer estaticidade, que é sinônimo de uma realidade uniabarcante onde todas as
formas repousam indeterminadas juntamente com seu infinito dinamismo de
possibilidades. Para alcançarmos o Ser imutável, único,
inalterável, ingênito e imperecível, Parmênides recomenda desviarmo-nos do
caminho das opiniões que relaciona à inconstância aparente das coisas para seguirmos
a única via capaz de nos conduzir à realidade absoluta: a via da verdade sólida
que parte do caráter particular dos entes limitados em determinações e vai na
direção do Ser do cosmo que não se submete a qualquer forma de determinação, de
limitação ôntica. A via da verdade é a via do pensamento racional capaz de
revelar o Ser que, conforme a tradição assumida por Parmênides, pode ser
atingido com o pensar, já que o pensar é o mesmo que o Ser. Por isso, a
sensibilidade habitual, como a visão e a escuta, não é capaz de revelar o Ser
mas apenas a linguagem pois o Ser é o único verbo.
Parmênides
revelou grande originalidade em relação a seus predecessores, pois, mais que
seguidor de uma tradição de pensamento que reelabora, ele interfere nas
próprias estruturas da cosmologia, inaugurando algo considerado mais denso e
profundo, uma ontologia. Ele afirma o
Ser como o único que é e as manifestações
ônticas não mais que diversificações limitadas deste mesmo Ser. E vai além:
quer fazer da linguagem o instrumento para nomear o Ser em sua pura
manifestação. É a partir daí que, de
acordo com Isabela Bocayuva, começou a se desenvolver uma preocupação lógica
mesmo que ainda não tenha o sentido do puro formalismo surgido mais tarde.
A sintonia
As
teorias de Heráclito e Parmênides que, numa primeira visão, podem parecer completamente
opostas, revelam-se parte de uma mesma tradição de pensamento que busca a
compreensão do todo universal. Os dois filósofos olharam de maneiras diferentes
para a realidade mas ambos se esforçaram para fugir da interpretação
superficial e aparente que podemos ter do universo ao levarmos em conta apenas
os dados que nos chegam pelos sentidos. Heráclito preferiu apontar como nosso
maior engano a sensação que temos de que as coisas permanecem as mesmas. Para
ele, os sentidos não são capazes de nos revelar, por exemplo, que até mesmo o
diamante, mineral que consideramos o mais sólido, está em permanente mutação. Já
Parmênides prefere apontar como ilusão a aparente transformação das coisas do
mundo pois, para ele, tais mutações insinuam uma realidade onde há Ser e não-ser, o que, para ele, é um absurdo pois não há o não-ser. Assim, por caminhos diferentes,
os dois filósofos afirmam a existência de uma realidade única acessível apenas
aos que são capazes de ultrapassar a esfera dos sentidos e pensar com a razão,
instância que não recebe as determinações do mundo físico.