terça-feira, 7 de outubro de 2014

PRÉ-SOCRÁTICOS - FILOSOFIA DA NATUREZA.


Heráclito e Parmênides


A unidade na diversidade.

Tudo é um (hén panta). A afirmação condensa em três palavras a linha de pensamento que os filósofos pré-socráticos seguiram na tentativa de explicar racionalmente o universo.  Trata-se de uma chave para a interpretação das teorias desses filósofos que, apesar de suas variadas descrições do dinamismo cósmico, compartilham de uma mesma tradição, tendo como pano de fundo para o desenrolar de tal dinamismo uma unidade de onde tudo provém, que a tudo sustenta e onde tudo se esgota. 

A multiplicidade de teorias sobre o cosmos entre os pré-socráticos talvez revele mais sobre a perplexidade e a inquietude destes quanto às transformações físicas que percebemos a todo instante do que, propriamente, quanto a algum resquício de dúvida sobre a existência de uma realidade única. Para eles, esta unidade é dada, praticamente, como certa. O que “incomoda”, portanto, é o vão, o transitório, o perecível do mundo perceptível pelos sentidos, fonte de incertezas e contradições, de aparências que iludem por se mostrarem de forma isolada, particularizada no plano dos entes e nos encobrem o acesso ao que seria a uma verdade eterna e inquestionável.

Heráclito

A afirmação de uma realidade única e absoluta se faz presente até mesmo na teoria do filósofo que mais valorizou o que seria, supostamente, a negação desta realidade: o porvir que se mostra na transitoriedade das coisas do mundo, sempre múltiplas e inconstantes, em permanente oscilação de formas e no perecimento da matéria. Para Heráclito de Éfeso, colocar em evidência as transformações que captamos pelos sentidos - em vez de minimizar ou ignorar a importância desses eventos por considerá-los mera aparência - foi o modo de nos mostrar que o tudo é o emergente. O constante emergir das coisas que nunca se fixam, que seguem num fluxo permanente e inesgotável, nascendo ao mesmo tempo em que morrem é a maneira de ser da realidade única para este filósofo grego. O devir, portanto, é a própria afirmação desta realidade que pode ser simbolizada pelo fogo, elemento primordial e unidade que a tudo consome consumindo-se a si mesma. No plano dos sentidos, iludimo-nos com a sensação de que há alguma permanência ou imutabilidade das coisas que são. É o que Heráclito quer dizer em um de seus fragmentos mais célebres: “Não se pode descer duas vezes ao mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado (...)”. A physis, portanto, revela-se como unidade em permanente mudança, em eterno movimento, instância imutável que se define, paradoxalmente, como eterna transformação.

Ainda de acordo com Heráclito, a realidade suprema é a que não se determina em nenhuma configuração perceptível aos sentidos (não se esgota em nenhuma configuração ôntica). O filósofo compara o Todo à guerra por revelar-se em seu dinamismo próprio como luta entre os opostos, um movimento que a tudo abarca e em que tudo se articula em divergência e convergência. É no fluir constante que se manifesta o logos.  Este dinamismo universal permanece inacessível ao homem comum, cuja visão se esgota na particularidade das coisas vistas isoladamente. Este não alcança a compreensão da unidade articulada da realidade que não se manifesta aos sentidos. Mas este princípio único é inteligível ao ser humano capaz de pensar para pensar o logos como o “todo que está junto”, um todo que se faz presente de maneira a revelar que cada coisa somente é o que é em contínua ligação com tudo o que esta coisa não é. Assim,  totalidade é indeterminação, pois consegue escapar das cadeias que nos prendem à particularidade ilusória dos entes. É este o sentido do que nos diz, no fragmento 89, o pensador de Éfeso: “ser o cosmo, para os acordados, uno e comum (koinón), enquanto, dentre os que dormem, cada qual se volta para seu cosmo particular”.

Parmênides

O pensamento de Parmênides, embora, desde a Antiguidade, seja considerado oposto ao de Heráclito, compartilha com este a mesma espinha dorsal da tradição inaugurada por Tales de Mileto. Tradição assimilada e desenvolvida por Anaximandro que a transmitiu a Xenófanes, mestre de Heráclito e Parmênides. A professora de Filosofia da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Izabela Bocayuva, parte da visão de Heidegger para defender a tese de que as teorias dos discípulos de Xenófanes, em vez de se contraporem radicalmente, a ponto de se negarem ou excluírem uma à outra, são apenas perspectivas diferentes na afirmação de um princípio único de toda a realidade.
A estratégia de Parmênides para decifrar esta realidade suprema é negar a experiência proveniente do plano ôntico mas não no sentido de desconsiderar sua existência. Para o pensador de Eleia, esta negação consiste em não tomar o mundo que se apresenta aos sentidos como aquele em que o todo se esgota, mas sim como fonte de ilusões e de manifestações de particularismos que encobrem o Ser. De acordo com o filósofo, o que os sentidos nos revelam é o que, de alguma forma, tenta negar o todo e afirmar o nada mas tal negação resulta em “fracasso” pois tudo é, mesmo o que se esforça para negar o Ser. O próprio esforço da negação já é algo inserido no dinamismo da totalidade. A multiplicidade dos entes, resultado do que seria uma permanente tentativa de negação do Ser, torna-se uma afirmação deste próprio Ser, ou seja, não há como escapar do Ser, tudo é e não há o não-ser. Cabe a nós, portanto, evitar o caminho do engano desprendendo-nos das percepções que nos iludem ao mostrar-nos apenas a realidade aparente das coisas e que assim nos “tenta” ao não-ser e nos submerge em uma inconstância ilusória entre o Ser e o não-ser, um movimento aparente que encobre a imobilidade do Ser. Imobilidade que não quer dizer estaticidade, que é sinônimo de uma realidade uniabarcante onde todas as formas repousam indeterminadas juntamente com seu infinito dinamismo de possibilidades.     Para alcançarmos o Ser imutável, único, inalterável, ingênito e imperecível, Parmênides recomenda desviarmo-nos do caminho das opiniões que relaciona à inconstância aparente das coisas para seguirmos a única via capaz de nos conduzir à realidade absoluta: a via da verdade sólida que parte do caráter particular dos entes limitados em determinações e vai na direção do Ser do cosmo que não se submete a qualquer forma de determinação, de limitação ôntica. A via da verdade é a via do pensamento racional capaz de revelar o Ser que, conforme a tradição assumida por Parmênides, pode ser atingido com o pensar, já que o pensar é o mesmo que o Ser. Por isso, a sensibilidade habitual, como a visão e a escuta, não é capaz de revelar o Ser mas apenas a linguagem pois o Ser é o único verbo.

Parmênides revelou grande originalidade em relação a seus predecessores, pois, mais que seguidor de uma tradição de pensamento que reelabora, ele interfere nas próprias estruturas da cosmologia, inaugurando algo considerado mais denso e profundo, uma ontologia. Ele afirma o Ser como o único que é e as manifestações ônticas não mais que diversificações limitadas deste mesmo Ser. E vai além: quer fazer da linguagem o instrumento para nomear o Ser em sua pura manifestação.  É a partir daí que, de acordo com Isabela Bocayuva, começou a se desenvolver uma preocupação lógica mesmo que ainda não tenha o sentido do puro formalismo surgido mais tarde.

A sintonia


As teorias de Heráclito e Parmênides que, numa primeira visão, podem parecer completamente opostas, revelam-se parte de uma mesma tradição de pensamento que busca a compreensão do todo universal. Os dois filósofos olharam de maneiras diferentes para a realidade mas ambos se esforçaram para fugir da interpretação superficial e aparente que podemos ter do universo ao levarmos em conta apenas os dados que nos chegam pelos sentidos. Heráclito preferiu apontar como nosso maior engano a sensação que temos de que as coisas permanecem as mesmas. Para ele, os sentidos não são capazes de nos revelar, por exemplo, que até mesmo o diamante, mineral que consideramos o mais sólido, está em permanente mutação. Já Parmênides prefere apontar como ilusão a aparente transformação das coisas do mundo pois, para ele, tais mutações insinuam uma realidade onde há Ser e não-ser, o que, para ele, é um absurdo pois não há o não-ser. Assim, por caminhos diferentes, os dois filósofos afirmam a existência de uma realidade única acessível apenas aos que são capazes de ultrapassar a esfera dos sentidos e pensar com a razão, instância que não recebe as determinações do mundo físico.

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