QUESTÕES DE MORALIDADE E UNIVERSALIDADE EM ZYGMUNT BAUMAN
Sérgio Augusto Borges
Resumo: este trabalho mostra alguns dos pontos mais importantes das reflexões de Zygmunt Bauman a respeito da Ética na era moderna e na pós-modernidade. Nos últimos cinco séculos, nos deparamos com diversas tentativas de se chegar a concepções éticas universais que foram sintetizadas em códigos provados como falhos e incompletos. A tão propalada universalidade de leis morais revelou-se sempre precária e logo à primeira vista, apenas pelo fato de existirem vários códigos com a mesma pretensão: ser universal. Para Bauman, a alternativa que se abre para a definição de parâmetros éticos na pós-modernidade é a de uma corajosa valorização dos sentimentos e impulsos morais comuns a toda pessoa humana. Nestes residiriam a base da verdadeira universalidade ética e não em códigos que se autoproclamam universais mas com universalidade circunscrita a fronteiras estatais, fato que, por si só, anula qualquer pretensão ao universal.
Palavras-chave: ética, pós-modernidade,
universalidade, moralidade
Abstract: this paper shows some of the most important points of the reflections of
Zygmunt Bauman about ethics in the modern era and in post-modernity. In the
last five centuries, we have faced several attempts to reach universal ethical
views that were synthesized in codes as proven flawed and incomplete. The
much-touted universal moral laws proved to be always precarious and at first
sight, just because there are several codes with the same intention: to be
universal. For Bauman , the alternative that opens to the definition of ethical
standards in postmodernity is a bold enhancement of feelings and moral impulses
common to every human person . These reside the basis of true universality and
ethics codes not in self-proclaimed universal but with universality limited to
state borders, a fact which in itself invalidate any claim to the universal.
Keywords: ethics, post- modernity, universality,
morality
Perspectivas moderna e pós-moderna de moralidade.
A problemática da moralidade começou
a tomar suas feições atuais no início da era moderna, quando o indivíduo passou
a se firmar como autônomo para sua própria autoconstituição. Até então, as
normas de conduta sociais eram apresentadas como se fossem de origem divina. Na
perspectiva de tais sociedades tradicionais, não havia espaço para contradições
entre o que era dado como certo e o que era tido como errado. A lógica que
imperava era a lógica da disjunção “ou/ou”. A escolha de caráter pessoal,
independente dos valores em voga, era tomada como desviante, uma vez que a escolha correta já
nos era dada por Deus. Liberdade humana, portanto, assumia um caráter de erro
desafiante dos costumes. O que se
afastava do certo – modos e meios de vida estabelecidos por Deus – só podia ser
errado, transgressor, pecaminoso.Para fazer valer as normas sociais, a
sociedade contava com mecanismos extremos de administração da conduta
individual, entre eles uma inflexível e onipresente vigilância coletiva.
Com o afrouxamento da força da tradição,
aliviou-se o peso das imposições morais ditas divinas. Foi uma consequência do
contexto histórico que favoreceu uma crescente pluralidade de situações
mutuamente autônomas para homens e mulheres. O progressivo centramento das
decisões na esfera do indivíduo abalou as rígidas concepções da ética
tradicional pois fez aflorar a infinidade de interesses e de concepções de
mundo. A lógica “ou/ou” passou a não ter mais sentido, visto que o Bem passou a
apresentar uma face contraditoriamente caleidoscópica, no sentido de que o belo poderia não ser o verdadeiro, o agradável poderia também ser o falso,
o útil poderia não ser bom. Abriu-se, desta forma, ao
indivíduo, um horizonte de escolhas em que era preciso adotar critérios
estritamente pessoais para a tomada de decisões. Tornou-se necessária, para
cada um, a constituição da própria identidade por meio do processo contínuo de
tomada de decisões. A complexidade do mundo moderno se apresenta na forma de
ações que a pessoa precisa escolher, ações que escolheu dentre outras que
poderia escolher mas não o fez. Por isso, é imprescindível calcular, medir,
avaliar.
Assim, cai por terra o tipo de lógica
que apresentava uma das vias de conduta moral como estritamente certa, a que
seria garantidora o bem enquanto outras, também possíveis, deveriam ser
descartadas por nos conduzirem fatalmente ao erro. Mas, apesar dos caminhos
abertos para a auto-escolha individual, o homem moderno parece ter se sentido
órfão de uma ética uniabarcante, que estruturasse a sociedade dando-lhe sentido
moral coletivo apesar dos caminhos abertos para as individualidades. Uma
solução seria voltar atrás ressuscitando um novo credo religioso, outra seria
estimular uma ideia não-religiosa mas convincente o bastante para compreender o
todo social. A grande dificuldade era que a nova sociedade já se estruturara
com homens e mulheres com vidas fragmentadas, separadas em muitas metas e
funções soltamente relacionadas. Num mundo assim esparso, dividido, como
esperar o sucesso de uma ideia que se pretendia “onicompreensiva” que
promovesse uma visão unitária? O dilema levou legisladores e
pensadores modernos a tratar a moralidade como algo que precisa ser planejado e
enxertado na conduta humana, não como um “traço natural” do homem. Por isso,
tentaram compor e impor uma ética como um sistema coeso de regras morais
transmitidas por meio de ensinamentos para posterior cobrança e obediência.
As inúmeras tentativas de
substituição da crença pela razão não lograram êxito. Os códigos planejados por filósofos continham,
implícita em suas fórmulas, a velha desconfiança de que a liberdade de escolha
sempre se dirige para o erro, de que, sem vigilância, os homens tendem à
degeneração e à corrupção moral. A
desconfiança fazia, então, com que a liberdade tivesse que ser contida e até
reprimida por ser considerada fonte de instabilidade. Era preciso criar
mecanismos de recompensa e de punição para que os indivíduos chegassem, sob
cálculo, à conclusão de que lhes valeria a pena seguir o caminho da moralidade
estabelecida para satisfazer os próprios interesses.
Mas como seria possível o êxito de
códigos que desqualificam a potência primordial da conduta moral, qual seja, a
autonomia de escolha, já que tais códigos
apontam para a estruturação de uma moral heterônoma, com normas impostas
de fora pra dentro, sob coação, por uma administração racional?A resposta dos
filósofos modernos foi considerar esta uma
aporia apenas temporária, apenas um resto de não-razão, nada que não
pudesse ser resolvido no decorrer do “progresso da humanidade”. Afinal, a
modernidade se caracteriza, justamente, pela solução de conflitos, ou seja,
todos os conflitos têm soluções possíveis que estão à espera de serem
encontradas. Por isso, duas “bandeiras gêmeas” se impuseram para filósofos e
legisladores do mundo moderno: universalidade e fundamentação. As duas
bandeiras foram erguidas com a pressuposição de que boas regras são aquelas
artificialmente planejadas. Para os legisladores, esses ideais de
universalidade e fundamentação seriam atingidos por meio da coação que levaria
à uniformização dos valores e práticas sociais. Para os filósofos, fundamentos
epistemológicos seriam capazes de construir modelos de natureza humana
universal: criam que haveria de haver prescrições éticas reconhecíveis por toda
criatura humana só pelo fato de serem criaturas humanas. Assim, os filósofos
ajudaram a construir o sujeito do estado como a síntese do destino humano.
“O pensamento e a prática morais da
modernidade estavam animados pela crença na possibilidade de um código ético
não-ambivalente e não-aporético”. Para ZigmuntBauman, o pós-moderno é a
descrença nessa possibilidadepois “uma moralidade não-aporética, não ambivalente,
uma ética universal e objetivamente fundamentada talvez seja uma
impossibilidade, uma contradição nos termos”.
Responsabilidades morais e normas éticas.
À deslegitimação das instâncias
garantidoras dos códigos de conduta das sociedades tradicionais, seguiu-se um
certo vácuo de normas que pudessem se legitimar como aquelas que visam o bem
comum. Esta ausência foi como que uma semente de fruto amargo deixada no solo
em que se plantou a modernidade, qual seja, o solo da individuação em que, ao
sujeito, é designada maior autonomia para tomada de decisões.
A liberdade para escolhas individuais
com base em critérios definidos por conta própria no lugar da sujeição a
padrões de conduta assumidos de forma heterônoma, pode até ter sido saudada por
intelectuais renascentistas como um desatar de condicionamentos que estagnavam
a sociedade fazendo, por exemplo, com que a mera circunstância de nascimento
fosse fator determinante definitivo e irrevogável.
No entanto, a carência de normas
gerais explicitamente assumidas por todos gerou insegurança e instabilidade na
convivência entre sujeitos que deveriam fazer parte do todo incipiente da nova
ordem burguesa. A tal semente feita de ausência gerou a crise ética que se
estendeu ao longo de toda a era moderna. Crise que se tentou superar com
elaborações constantes de códigos éticos que tinham em comum a pretensão de dar
conta da totalidade da convivência humana.
Os sucessivos fracassos parecem ter acentuado
em vez de refreado a obsessão por leis uniabarcantes. Obsessão que os óculos da
modernidade faziam ser chamada de otimismo. Justo nome na visão de quem havia
experimentado diversos triunfos da razão por conta da evolução da ciência. O
sucesso, portanto, era uma questão de tempo, pois este sempre nos leva ao
aperfeiçoamento. Assim justificou-se a crença na possibilidade de um futuro conjunto
sistêmico de leis morais que visem ao bem de todos e de cada um.
Um passo mais sofisticado nessa busca
por uma totalidade sistêmica no campo da moral foram as teorias epistemológicas
que pretenderam evidenciar alguns princípios universais constitutivos da
razão humana. Princípios que devem, necessariamente,
ser levados em conta na definiçãode
quaisquer normas de convivência. Tais
teorias epistemológicas não foram o bastante para evitar novos insucessos de
códigos pretensamente uniabarcantes. Sérios obstáculos se impuseram à teoria de
Immanuel Kant que nos deixou como legado a defesa da autonomia do sujeito
considerado por ele capaz de definir por si mesmo suas as próprias leis de
conduta com base em princípios racionais que podem ser compartilhados por todos
os seres humanos. O filósofo de Königsberg
talvez já intuísse que a “minoridade” dos sujeitos causada pela imposição de
códigos morais, em vez da adoção voluntária de leis universais pelos
indivíduos, pudesse ser a principal causa das fracassadas regulamentações.
Para
Zygmunt Bauman, um dos maiores obstáculos à autonomia dos sujeitos pretendida
por Kant sempre foi a desconfiança nos “eus reais”, desconfiança que persistiu
como nódoa na tão cultuada racionalidade do mundo moderno. Afinal, não é a
razão um bem compartilhado por todos os seres humanos, sem exceção? Se todos
somos capazes de pensar e de certificar-nos, por conta própria, que o bem que
interessa a cada um é o bem que deve interessar a todos, por que então duvidar
que homens e mulheres deixarão de fazer escolhas individuais de acordo com
normas voltadas para o bem comum? A origem desta contradição, para Bauman, tem
a ver com a própria maneira de ser da autêntica moralidade, que tem na
ambiguidade sua principal marca. Uma condição que, de acordo com o sociólogo,
foi ignorada por legisladores e filósofos por estes sempre temerem o que é de
difícil ou mesmo de impossível compreensão por meio de teorias. Para eles, o
que é inconstante, imprevisível, imponderável, deve ser forçosamente envolvido
por códigos de conduta que orientem as ações.
Então,
a moralidade oficial precisa equilibrar-se o quanto for possível em um sistema
de punições e recompensas que faz com que a liberdade de cada um seja
direcionada para fazer escolhas planejadas, calculadas, mediadas pelo amor
próprio e pela razão para se evitar o que é mal e atingir o bem para si.
Produz-se, então, uma cadeia de ações que fogem à moralidade, pois esta não
pode ser feita de ações por interesses.
Para
Zigmunt Bauman, a ética pós-moderna é aquela que abandonou a ilusão da
universalidade para leis morais e assume que é a competência moral de seus
membros que torna possível a existência contínua e o bem estar da sociedade.
Segundo Bauman, sujeitos capazes de
decisões próprias sem serem coagidos por um sistema de normas elaboradas por
legisladores que contam com a força para fazê-las cumprir, são sujeitos que
desenvolvem o senso de responsabilidade necessário para lidar com situações que
exigem consenso.
O
que Bauman chama de repersonalização da moralidade começa com a valorização do
fato da “intimidade moral”, que ele compara ao cogito cartesiano como última instância do sujeito a qual é
impossível negar. É na intimidade moral que residem os impulsos morais e as
emoções, matérias-primas com as quais se faz a autêntica moralidade da
convivência humana. Autêntica porque autotélica e indiferente a propósitos e
utilidades. É neste estado bruto da moralidade, tão temido por legisladores e
filósofos, que podemos encontrar o sedimento capaz de fazer com que a razão de
ser da sociedade se manifeste a todos os seus membros. Se é de cada um de nós
que partem os sentimentos que são acolhidos em uma cadeia intersubjetiva de
interpretações, podemos nos sentir como bases de sustentação da sociedade e,
como tais, moralmente responsáveis em vez de meros cumpridores de normas. Em vez
disso, a insistência em modelos de sociedade que não promovem a
responsabilidade individual acaba por aumentar as chances de ocorrer o que mais
se teme: o triunfo da imoralidade. Isso porque leis coercitivas partem da
pressuposição de que todos não são confiáveis e devem ser submetidos à coação
moral. Ficam, então, isentos de responsabilidade e, em consequência,
incompetentes para tomada de decisões morais. Essa incapacidade faz com que, em
momentos de crise, os sujeitos aceitem com facilidade sistemas opressivos de
governo que apresentados como solução.
A universalidade ilusória
A moralidade autêntica não é
instância que se submete a moldes ou manipulações por parte de poderes
instituidores de códigos éticos. Escapa, como água por entre os dedos, a toda
tentativa de determinação forçada. No entanto, o homem parece não estar disposto
a abrir mão das tentativas de encontrar o código ético por excelência, que,
julgando-se expressão definitiva de nossa natureza, poria fim a todos os
dilemas morais. Esta foi a busca implementada pela modernidade, na qual
caminhamos com passos por sobre tábuas de salvação de novos códigos,
abandonadas uma após a outra tão logo percebemos que a água já encobre nossos
pés.
Mais do que ninguém, os filósofos
sabem da condição relativa dos códigos éticos, os quais não escapam da
temporalidade histórica. É por isso que, para Zygmunt Bauman, as imagens de bem
e de mal que partilhamos não duram mais do que o tempo do consenso que nos
permite alguma estabilidade social, algum sentido de conjunto temporário. Para
homens e mulheres absorvidos em suas tarefas cotidianas, é provável que não
haja paralisantes inquietações quanto ao que devem ou não fazer. Parecem
satisfazer-se em agir conforme aquilo que o grupo espera de cada um, tendo a
garantia de que fazem o que é aprovado pelas pessoas que compartilham daquele
mesmo espaço e “momento histórico de eticidade”. É algo que tranquiliza a
consciência saber que os “iguais a nós” teriam feito o mesmo ou quase o mesmo
que fizemos, tendo à disposição a mesma reduzida escala de graus de uma mesma
opção.
A tranquilidade da consciência,
portanto, é grande devedora da sensação ou crença da universalidade das normas
morais em vigor. Por isso, inquietações sempre hão de sobrar para filósofos
encarregados da manutenção de tal crença, uma vez que a ela é que se vincula a
obediência da maioria. Convencida por filósofos quanto à universalidade das
normas, as pessoas dificilmente se questionam quanto à relatividade das mesmas,
pois desconhecem que outras pessoas em outros tempos e lugares, portadoras de
noções distintas das fronteiras entre o bem e o mal, tomariam decisões
inteiramente diferentes das suas. Mas esse desconhecimento não diminui a
necessidade de que o poder de persuasão dos filósofos seja forte o bastante
para estar à altura da carga de incertezas, ansiedades e medos de homens e
mulheres quanto ao futuro. São sentimentos e emoções capazes de fazer emergir a
crise dos valores ao escoar a credibilidade de códigos construídos e mantidos
por artifícios de retórica e da força.
A necessidade de grandes esforços
retóricos deriva, em muito, da incapacidade em lidar de forma tranquila com a
diversidade de formas de se encarar o bem e o mal. Segundo Bauman, poucos
autores foram como Montaigne que escreveu sobre isso de forma resignada e
equânime. As diferenças, na maioria dos casos, são vistas com horror, como
supremo absurdo a desafiar o pensador pela permanente ameaça que representa às
conquistas do mundo civilizado. A saída para o dilema da diversidade de
concepções sobre bem e mal, tem sido quase sempre a mesma: afirmar a verdade como
sendo única por definição e, por consequência, também a retidão e os preceitos
morais. É preciso, portanto, afirmar com todas as letras que outras normas são
não apenas diferentes mas também erradas e más e que são aceitas apenas por
ignorância, imaturidade ou por má-vontade,
acusações que servem de escada pela qual se eleva a autoridade das normas
morais defendidas.
Além da negativação das normas
alheias, os defensores da moralidade que se sabe apenas mais uma entre tantas,
precisam, é claro, embasar seus argumentos em alguma forma de positividade. O
mais usual tem sido atribuir às normas que defendem uma superioridade que seria
garantida pelo estágio evolutivo presente, ponto de culminância do processo
constante de aperfeiçoamento da humanidade ao longo do tempo. Dessa forma, temporaliza-setoda e qualquer alteridade
feita pelo homem, inclusive a alteridade ética. Tudo o que dentro das normas em
uso se apresenta como contraditório, dissonante, ou que não responde
adequadamente aos desafios e necessidades históricas é considerado mero
obstáculo passageiro, algo a que a evolução saberá dar conta. A temporalização
atesta ainda que outras formas de moralidade são como relíquias que dilataram
seu tempo, sendo praticadas por quem já está de fato morto, como cadáver
insepulto que permanece inconvenientemente instalado na ante-sala da era
moderna.
A maneira de lidar com qualquer
presença de contundente negação da norma é o menosprezo. Por esta via, tudo que
ameaça os princípios de coerência e congruência, marca profissional dos
filósofos, é tomado como pura aberração. Claro que, para ter a anuência das
pessoas quanto a isso, é preciso que estes mesmos princípios da lógica
filosófica tenham sido incutidos nas mentes dos que estiverem sob a jurisdição
da norma ou mesmo que neles já estejam projetados os interesses de poderosos
locais. Poderosos que, para defenderem suas próprias ambições, usam como
embuste bandeiras universalistas. A
difusão das formas de raciocínio coerente é tarefa preponderante de todo
filósofo comprometido com a justificação das normas pois trata-se de uma forma
de pensar que tende à previsibilidade, característica comportamental valiosa
para todo e qualquer governante que exerce o poder em nome de sua própria
vontade.
A crença dos arautos da modernidade
de que possuíam uma ordem moral superior e mais avançada no tempo
transformou-se em sólida convicção, passando a ser usada como justificativa
para nações-estado imporem-se sobre outras. Afirmavam ser impulsionadas pela
causa enobrecedora de fazer a civilização espalhar-se pelo globo. A alteridade
cultural projetada sobre a seta do tempo, forjava a visão do outro como
estagnado no passado, sempre associado ao que ainda não evoluiu ou
aperfeiçoou-se. A estas relíquias incongruentes destinadas à extinção, a
história não reserva outra saída a não ser a subordinação àqueles capazes de
difundir o conhecimento que leva à mudança para o melhor.
As inquietações do universalismo.
Como discurso moldado para legitimar
o poder estatal, o universalismo encontrou adversários postos tanto como força
centrípeta de implosão, como força centrífuga de dissolução de sua vontade.
Como representante da primeira, uma coleção heterogênea de paroquianos,
parentes e outros habitantes locais; como agenciadores da segunda, filósofos de
boa-fé para quem o autêntico postulado da universalidade põe abaixo não só as
atribuições morais de comunidades locais, transformadas em unidades
administrativas da nação-estado, como também a autoridade moral reivindicada
pelo estado. Foram adversários que se postaram contra todo e qualquer projeto
universalizante que revelasse as ambições convenientemente uniformizantes para
estado moderno
Para os comunais, a prática moderna
de universalização manifestou-se como força de opressão, ato de violência
praticado contra a liberdade humana, ultraje e ofensa esmagadora de culturas
estabelecidas por sucessivas gerações. Seus costumes locais foram
ridicularizados e relegados ao plano das superstições que resistiam ao poder
centralizador, tendo que, por isso, ser condenadas à morte. Ligadas que estavam ao tempo e ao território,
as culturas localizadas foram envergadas por duros golpes de espada de certos
princípios universais que exigem que normas morais passem pelo crivo da
extratemporalidade e da extraterritorialidade.
O golpe, no entanto, produziu também
estragos no mesmo ponto de onde partiu. Ao mesmo tempo em que se impunha por
meio da honrosa alegação de alojar-se no cerne da natureza humana, o código
moral estatal desmascarava-se a si mesmo ao limitar sua abrangência aos
territórios sujeitos a determinada influência política ou reivindicados por
esta. Pregava, portanto, uma universalidade natimorta pelo fato de
circunscrever-se às fronteiras da nação-estado, contradição de origem que se
revela como expressão de interesses apenas diversos dos interesses de
lideranças locais. Afinal, a parcialidade implícita em códigos com validades
delimitadas por fronteiras os exclui por completo da qualidade de universais.
Que argumentos, então, poderiam ser usados para fazer com que membros de
comunidades locais adquirissem visão mais ampla e facilitadora da substituição
de um código moral por outro? Como
convencê-los a elevar seu ponto de vista a um plano superior e mais abrangente,
imparcial, crítico de costumes enraizados e livre de pressões comunais. Por que
deveriam desatrelar-se de lealdades e particularismos comunais e aceitar a
submissão ao modelo de cidadania arquitetado pelo estado?
Também para os universalistas de
boa-fé, as práticas universalizantes dos estados são inaceitáveis. Para eles, é
nulo o princípio aristotélico da política como instância primeira de gestação
do humano. O autêntico postulado da universalidade, portanto, destoa de toda e
qualquer comunidade política autodeterminada, seja ela de âmbito local ou
nacional. A exigência universalista é sempre direcionada contra a polis, uma vez que esta, como recurso de
autoafirmação, sempre defende a particularidade de seus membros em relação aos
membros de outras polis. O outro, a
alteridade localizada além das próprias fronteiras, contrapõe-se ao eu
“situado” que se julga membro da comunidade cuja moral seria a universalmente
válida, uma oposição capaz de suscitar intolerâncias recíprocas. Para os
universalistas mais exigentes, a moralidade verdadeira se radica apenas em
qualidades e capacidades possuídas por indivíduos enquanto pessoas humanas. O
que for contrário a isso não passa de falso código moral, proclamado por
poderes bem mais estreitos que o universal. Consideram códigos morais surgidos
de interesses grupais ou em nome de “suprema sabedoria grupal” como instâncias
de conspiração entre caudilhos atacados de ganância pelo poder.
Pregam os filósofos de boa fé que um
poder, para ser universalista de fato, deve ser capaz de identificar a
população que está (ou que pode vir a estar) sob sua administração com a
espécie humana em sua totalidade. Porém,
uma tal perspectiva de condução do poder tem pouquíssima probabilidade de ser
levada a cabo num mundo em que as agências que promovem o universalismo não
detém uma soberania que seja verdadeiramente universal. Na realidade desenhada
pelo mundo moderno ainda em vigor, as fronteiras dos estados é que delimitam o
horizonte universalista. Com isso, o forma-se um emaranhado de autoridades que
se consideram detentoras de padrões universais de moralidade, diversidade de
posições que põe sob suspeita o valor de cada uma das ditas
universalidades.
Neste cenário de “universalidades”
circunscritas a diferentes domínios limitados por fronteiras entre vizinhos,
cria-se a solidariedade entre os governantes, o que possibilita que cada um
deles, reconhecendo os demais como soberanos e respeitando os limites
territoriais das jurisdições, governe de acordo com as leis proclamadas em seu
território. É esta solidariedade que serve de base para a formação de um novo
modelo de normas morais que possibilita a convivência entre as nações e entre
os povos. Segundo Bauman, a exemplo do ocorrido no interior de cada estado, as
normas morais supra-estatais também são promulgadas segundo o padrão da lei
universal mas acabam por assemelhar-se a normas de relações internacionais.
Tornam-se, portanto, um arrazoado de diplomacia, barganhas e busca de “pontos
de consenso” genuínos ou fictícios. No final das contas, a universalidade
supra-estatal acaba por ter pouco de raízes comuns e muito de denominador
comum. Não há como esconder a evidência de que existem várias concepções de
moralidade universal e que somente a superioridade da força de um dos poderes
permite que sua concepção prevaleça sobre as outras.
Para Zygmunt Bauman, códigos de
moralidade supranacionais são mais uma forma de conceituação processual de
universalização, um tipo de conceituação que serve de último abrigo ao sonho de
universalidade como destino último da espécie humana. Foi este o abrigo que
ofereceu segurança à afirmação de que a “marcha do tempo” nos levará,
irremediavelmente, à universalização: confiança tão grande no futuro como
portador do remédio para todos os males, que é capaz de toldar os olhos para a
realidade das contradições que se apresentam no projeto universalista moderno.
Não foi à toa que Diderot nos chamou a atenção para a enorme crença que o homem
moderno depositou nos tempos que estão por vir, atribuindo a estes a capacidade
de corrigir todas as injustiças do presente e considerando-os como estuários de
um movimento que caracteriza a própria humanidade, o movimento das qualidades
que desafiam cada um dos seres humanos. Foi uma confiança que se alimentou da
imaginação e da fantasia, forças humanas capazes de se espalhar livremente no campo
fértil do porvir sem terem que se incomodar com
experimentações empíricas.
Coube à fase pós-moderna a destruição
de toda essa crença que se tornou característica fundamental da era moderna. Na
pós-modernidade, o que se apresenta dentro do contexto da historiosofia da
universalização é a chamada globalização. Esta, no entanto, não envolve a busca
de unidade entre as autoridades políticas, culturais e morais. Os fatores que
se supõem “globalizar” são considerados mais não-nacionais que inter- ou
supra-nacionais, fatores como a difusão
global da informação, da tecnologia e interdependência.
A ideia de moralidade universal,
depois de despedir-se da fundamentação na “missão civilizadora” das
nações-estados que se proclamavam mais desenvolvidas ou mais avançadas
culturalmente, se é que deva sobreviver, só pode ter como pontos de apoio em
fatores que são inerentes à espécie humana: os impulsos morais e pré-sociais,
anteriores, portanto, a todo e qualquer resultado comum ao processamento
social, produtos derivados de ações legisladora, ordenadora e educadora.
No campo de batalha em que nos deparamos
com pluralidade nova ou renovada de desafios morais, estão à espreita os comunitários, adversários dos pregadores
do universalismo e que oferecem como alternativa um já familiar refúgio cômodo
e acolhedor da “comunidade nativa”. Esta
é a alternativa que resta aos universalistas que sucumbirem na batalha ao aceitarem
como eterno e irremediável fato a persistência da pluralidade de soberanias
políticas e econômicas. Uma aceitação que pode ser considerada como posição
conformista e contrária à persistência na promoção de uma moralidade distante
de determinações grupais ou estatais mas ligada à totalidade da espécie humana,
posição que exige forte resistência por estar ancorada no território frio e
abstrato dos valores morais universais.
Considerações finais.
No campo de batalha em que se trava a
luta por hegemonias de concepções morais, os defensores de uma moralidade que
se ancora na pessoa humana têm como adversários tanto os grupos chamados
comunais, defensores do eu “situado”, como as organizações políticas estatais. Ambos
são portadores de concepções destrutivas do universalismo proclamado pelos
filósofos de boa-fé: os comunais porque o tomam como ultrajante violação de
direitos, veículo de opressão e de violência contra a liberdade; as
organizações políticas estatais porque restringem e congelam a perspectiva
universalizante no interior das fronteiras nacionais para atender a interesses
políticos. Ao contrário do que é pregado pelos universalistas, as nações-estado
particularizam seus membros frente aos de outras nações, propagando entre seus
indivíduos a crença em sua unidade e semelhança que os opõe aos estrangeiros, tomados
como outros diferentemente situados por estarem enraizados em outras polis.
Segundo Bauman, a alternativa
restante para os universalistas de boa-fé é, em primeiro lugar, o não conformismo
em relação às crenças que consideram irremediável e sem fim a existência de
pluralidades de soberanias políticas e econômicas, as quais teriam sempre nas
mãos o poder de moldar e manipular as normas morais. Em segundo lugar, a defesa
de uma moralidade fundamentada em nossos impulsos e sentimentos morais, traços
que fogem às determinações de processos de constituição de moralidades
heterônomas instaurados sejam no seio de uma comunidade local, sejam no de uma
comunidade nacional. A formulação e a defesa de uma tal moralidade universal
requer uma visão mais tranquila quanto ao fato de as imagens de bem e mal
diferirem de um lugar para o outro e de um tempo para outro tempo. Afinal, tais
imagens têm sido forjadas não a partir da perspectiva do universalismo mais
abrangente – aquela que tem como base a própria espécie humana - mas sim a partir
de perspectivas circunstanciais, originadas de interesses políticos e
econômicos.
Referência
BAUMAN,
Zygmunt. Ética pós-moderna. São
Paulo: Paulus, 1997.
Artigo muito bom! Parabéns!
ResponderExcluirEsclarecedor...