quarta-feira, 10 de abril de 2013

HERMENÊUTICA - ARTE E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO - FRIEDRICH D.E. SCHLEIERMACHER.

Resumo das partes A e B do livro "Hermenêutica, arte e técnica da interpretação", editora Vozes.


Parte A
De acordo com Schleiermacher, toda compreensão de discurso estranho é considerada uma interpretação. Para ser executada de forma mais aprofundada, esta atividade deve seguir regras de disciplina. É preciso haver um método adequado para que o trabalho exponha de forma científica toda a extensão e as razões de ser do processo interpretativo. Para Schleiermacher, os métodos disponíveis à época (1829) eram imprecisos, com regras às vezes claras, outras vezes muito confusas. Não havia algo que esboçasse o todo da Hermenêutica. Além disso, tais regras eram aplicadas apenas às obras da Antiguidade Clássica e às Sagradas Escrituras.
Schleiermacher decidiu, então, justapor dois autores com diferentes características de interpretação: Wolf - que evita a forma sistemática - e Ast – que adota esta forma por acreditar que nenhuma teoria pode ser comunicada cientificamente sem espírito filosófico. Eles têm, no entanto, opiniões semelhantes quanto à gramática, à hermenêutica e à crítica. Para Wolf, tratam-se de estudos preparatórios que abrem o acesso à esfera das disciplinas propriamente filológicas, como um órganon da ciência da Antiguidade; Ast quer tratar as mesmas disciplinas como apêndices da filologia, daí a necessidade de um tratamento científico para elas.
Schleiermacher diz que a hermenêutica era empregada apenas por filólogos clássicos e teólogos filólogos, e defende que ela tem um serviço a prestar muito maior. Opinião contrária à de Ast para quem o objetivo da hermenêutica é a produção da unidade da vida grega e cristã. Wolf afirma que a hermenêutica é muito imperfeita enquanto teoria. Para justificar essa posição, aponta pesquisas em regiões intermediárias como o significado das palavras, o sentido das frases e o encadeamento da fala. Mas, no texto de Wolf, Schleiermacher destaca uma declaração que vai ao encontro de sua tese. Declara Wolf que a hermenêutica é a arte de descobrir os pensamentos de um autor, de um ponto de vista necessário, a partir de sua exposição, o que combina com o pensamento de Schleiermacher para quem, onde quer que existam escritores a hermenêutica pode executar o seu trabalho. Este último situa a área de atuação da hermenêutica entre as situações em que absolutamente nada pode ser compreendido por um intérprete e aquelas em que há total compreensão do discurso durante a leitura e a audição. Portanto, deve haver pelo menos algo em comum entre o intérprete o autor do discurso e pelo menos uma coisa de estranho que careça ser desvelada.
Schleiermacher quer mais para a hermenêutica: defende que ela seja empregada não apenas em trabalhos escritos de toda ordem mas também às conversações e discursos imediatos. Outro dogma que pretende derrubar é o que define como estranho apenas aquilo que está escrito em língua estrangeira. Para o filólogo, teólogo e filósofo alemão, a hermenêutica pode servir também para interpretar ensaios escritos sem grande conteúdo intelectual, narrativas com vocabulário simples e até mesmo anúncios publicitários. É que, para ele, existe sempre o estranho nos pensamentos e expressões de um outro. A mesma arte pode ser empregada para a compreensão de textos escritos ou discursos orais com a única diferença de que, em uns, certos motivos são mais ressaltados e outros ofuscados, e inversamente no outro. A maior vantagem da interpretação de conversações significativas é que nelas o ouvinte conta com “a presença imediata do falante, a expressão viva que manifesta a participação de todo o seu ser espiritual, a maneira que ali os pensamentos se desenvolvem a partir da vida em comum”. Schleiermacher também levanta um protesto contra a tese de Wolf de que os pensamentos do autor devem ser descobertos com um conhecimento necessário. Para ele, há muitos casos em que esta fórmula não é adequada pois uma palavra pode ter diversos significados, dependendo do contexto em que é empregada. A evidência necessária fica sem lugar pois é possível provar, a partir de um dos pontos de apoio algo bem diferente daquilo que se prova a partir de outro ponto.
Na interpretação hermenêutica é preciso adivinhar, na reunião e na ponderação detalhada dos momentos históricos, o modo de combinação individual de um autor que teria sido diferente se executado por um outro autor. São casos em que a convicção pessoal pode ser comunicada facilmente a outros intérpretes mas não é preciso exigir de um trabalho como este a forma da demonstração. Trata-se de um tipo de certeza mais divinatória que surge quando o intérprete se envolve inteiramente com o estilo e o trabalho do autor. Para interpretar os textos clássicos, a intuição divinatória pode se fazer presente depois de um extenso engajamento com a pesquisa histórica por meio da qual o hermeneuta não apenas recolhe informações sobre a Antiguidade mas também é capaz de criar uma conexão espiritual própria com as formas da existência humana daquela época e com a constituição particular dos objetos de então. Só assim terá a firmeza divinatória para traçar elegantemente uma representação grega ou romana com o que mais nos impressiona nos dias atuais. A habilidade divinatória, portanto, surge do conhecimento tornado vivo graças ao exercício das diversas formas de exposição e dos limites e liberdades que lhe são próprias. Daí a exigência de Wolf quanto à habilidade própria do hermeneuta na composição antiga.
A diversidade de formas de expressão surgidas em uma língua, tais como as diferentes formas da arte da oratória e os diferentes tipos de estilo, fazem-nos demarcar dois períodos opostos. O primeiro é o período em que estas formas, aos poucos, se estabelecem. O outro é aquele em que as formas dominam. Se o escritor pertence ao primeiro, ele estava inserido nesta atividade contando apenas com a sua força produtora genuína e torna-se possível notar o seu poder ao examinarmos até que ponto sua criação fixou formas na língua. Uma semelhante potência pode ser observada, ainda que de modo secundário, naqueles que modificaram essas formas de modo particular fundando um novo estilo. O compositor que pertence ao segundo período não engendra uma forma mas compõe e trabalha sob os preceitos dela. A forma já fixada é uma força ordenadora. Sem a percepção desta relação de um autor com as formas já estabelecidas em sua literatura nem o conjunto nem o detalhe podem ser compreendidos corretamente.
A soma dos procedimentos comparativo e divinatório pode ser capaz de fazer com que o intérprete compreenda um autor melhor do que este pode se compreender. Ao método comparativo cabe a análise gramatical da obra, uma vez que a comparação insistente e contínua de palavras e expressões é capaz de tornar cada vez mais restrita a não compreensão de um termo. Ao método divinatório cabe a análise psicológica voltada para a compreensão do processo interno dos poetas e outros artistas do discurso. O processo metódico da interpretação atinge completamente o seu objetivo quando nossa atenção é dirigida para a produtividade do autor e para a totalidade objetiva da língua.
Parte B
Scheleiermacher concorda com Ast que expôs o princípio hermenêutico segundo o qual o particular não pode ser compreendido sem a compreensão do todo e esta não pode ser compreendido sem a compreensão do particular. Já as primeiras operações desta arte não podem ser estabelecidas sem o emprego deste princípio sob o qual repousa grande quantidade das regras da hermenêutica. O sentido de uma palavra num texto deve ser buscado por meio de um procedimento de descoberta do real valor linguístico desta palavra na posição em que ela se encontra. A parte do valor linguístico que pode ser aplicada é definida pela relação que a palavra mantém com as outras palavras do entorno, principalmente com aquelas em que fica estabelecida uma relação orgânica mais próxima. Isso significa que a palavra é compreendida como parte do todo, como elemento do conjunto.
Podemos dizer o mesmo de um encadeamento maior de frases. Há que se descobrir o conceito principal que domina cada articulação encadeada de frases. Importa saber com que exatidão se deve tomar uma série de rases e de que ponto de vista se deve apreender seu encadeamento, onde se deve conhecer o todo ao qual elas pertencem. A compreensão gradual de cada particular e das partes do todo que se organiza a partir delas, é sempre provisória. Quanto mais avançamos, , mais tudo o que precede é esclarecido pelo que se segue ainda que haja momentos de crepúsculo do entendimento no início de cada parte nova. É só no final que cada particular recebe sua plena luz e se apresenta com contornos puros e determinados. O conselho de Ast é começarmos toda a compreensão com um pressentimento do todo. No caso das obras escritas, os prefácios, mais que os títulos, são uma forma de se ter acesso a este pressentimento. Resumos e índices também nos fornecem uma intuição da articulação de uma obra. Com eles podemos concatenar as palavras principais que dominam as partes maiores e menores. Na falta destes recursos, o simples folhear do livro pode ser de grande valia antes do engajamento profundo na obra.
Ast amplia ainda mais a tarefa ao explicar que, assim como a palavra está para a frase, e a frase particular para a sua articulação mais próxima e esta para a obra mesma, como um elemento em relação a um conjunto e uma parte ao todo, assim, por sua vez, cada discurso e cada obra escrita é um particular que apenas pode ser compreendido completamente a partir de um todo ainda maior. Cada obra é um particular no domínio da literatura ao qual pertence e forma com outras obras de mesmo conteúdo um todo a partir do qual ela deve ser compreendida sob uma referência, a saber, a linguística. Cada obra deve ser também compreendida de acordo com a totalidade das ações do autor. Scheleiermarcher atribui ao intérprete linguístico toda a tarefa de apreender a obra particular na sua conexão com as que fazem parte do mesmo estilo literário. Para ele, isso se justifica porque as formas de toda composição se configuram a partir da natureza da língua e da vida comum desenvolvida simultaneamente e ligada a ela. Aqui, o individual pessoal fica em segundo plano. Já os que querem espreitar um escritor desejará ter uma visão viva de tudo o que se refere de alguma maneira ao processo de invenção. A intenção é perceber como se relaciona nele toda a empresa da composição à totalidade de sua existência. O intérprete do último tipo, ao se aventurar no domínio da interpretação linguística corre o risco de se revelar como um espírito nebuloso. É frequente que tais intérpretes atribuam aos autores intenções que eles nunca tiveram. Por outro lado, o hermeneuta com capacidade de estudos linguísticos arrisca-se ao pedantismo quando se atem apenas às análises perspicazes com comparações e conexões de uma obra com outras de seu gênero. Isso porque faltaria a ele para ver na obra o homem inteiro.


A HISTÓRIA DE DEUS.

A história de Deus: negado, afirmado ou justificado pela Filosofia.


Este texto pretende ser uma introdução às diversas concepções de Deus que, originando-se nas religiões, foram sendo incorporadas ou retrucadas pela Filosofia desde a Antiguidade até a Modernidade, com Renè Descartes e Immanuel Kant.



As religiões sempre representaram, para os homens, importantes suportes existenciais por conferirem sentido ao que eles não compreendem. O ser humano frágil, impotente e maravilhado diante das surpreendentes forças e transformações do universo, encontrou no sagrado formas de lidar com a realidade que o cerca. Pode-se dizer que o sagrado é uma criação humana que, longe de fazer parte de uma realidade puramente abstrata, desconectada da experiência e da materialidade mundanas, constitui-se num instrumento da intelecção para a ação dos homens no mundo. Uma tal afirmação mostra-se mais veraz ao examinarmos o papel desempenhado pelos mitos nas mais diversas civilizações. É neste exame que percebemos a capacidade dos mitos de influenciar na formação de identidades culturais que possibilitam a criação e a permanência da coesão social. A relação do sagrado com as circunstâncias práticas e afetivas humanas não anula a sua peculiar posição estrutural em nossa forma de conceber o mundo, qual seja, uma posição desvinculada da temporalidade que a tudo e a todos afeta e consome. Por isso, foi no espaço do sagrado que o homem primeiro conduziu seu pensamento para alinhavar a pluralidade de questões que lhe suscitavam interesse e admiração. Nele, o imediatismo das relações com as coisas e com os outros fica suspenso, abrindo caminho para um voltar-se sobre si mesmo e para um olhar distanciado do mundo, uma atitude reflexiva que envolve ponderação, cálculo, imaginação e demais formas de raciocínio presididas por uma ontologia divinizada, o mundo dos deuses. Não é à toa que o próprio Aristóteles confessa que ‘o amante dos mitos (philomytós) também, em certo sentido, é o amante da sabedoria (philosophós)’ já que o mito se baseia no assombro e na admiração ante a realidade desde as quais os homens começaram a filosofar. 
 
O exposto até aqui nos introduz a um dos mais importantes pontos comuns entre Religião e Filosofia. Já as religiões mais primitivas, como a Filosofia mais tarde, criaram sistemas de interpretação com os quais o homem exercitou sua capacidade de raciocinar e elaborar o mundo. Assim, pôde o homem não viver no mundo apenas de forma passiva e como um eterno estrangeiro, assombrado e desterrado. É provável que, no decorrer da história dos povos, a capacidade interpretativa dos mitos tenha sido questionada pelos que nela encontraram limitações, falhas e contradições, mas foi preciso surgir a civilização e o momento histórico adequados para que as dúvidas silenciadas ganhassem voz e abrissem o caminho para uma nova forma de pensar. Foi com os gregos que o cosmos e o ethos estruturados pela religião começaram a ser dessacralizados em favor de explicações alcançadas por meio da observação e da reflexão livres e de uma convenção cultural e moral que atingiu seu auge com os sofistas. Os primeiros filósofos esforçaram-se na busca de um fundamento racional que pudesse explicar a origem e as leis que presidem o universo. Estas questões que sempre se apresentaram nas mitologias e se mantiveram como problemáticas na Filosofia são exemplos da herança temática legada aos pensadores gregos. Dentro de tal herança, levanta-se a contraposição da necessidade do destino (moira) e da liberdade de escolha humana. Quanto à liberdade humana, pode-se dizer que Sócrates foi o primeiro a considerá-la possível ao afirmar que o homem é capaz de formular e conduzir o seu projeto de vida, ideia que desafiava as posições mais tradicionais da cultura arcaica grega. O determinismo dos mitos tomava o homem como inserido num eterno e inexorável processo de realização do destino e considerava inócuas as tentativas humanas de se contrapor a ele. O que subjaz de uma tal perspectiva é a valorização do que é ordenado e estável e, por isso, deve servir de parâmetro para a organização social, uma ideia que inspirou a concepção da pólis de Platão. A certeza da existência de uma força ordenadora do caos tornou-se a mais importante projeção da estrutura mitológica de compreensão do universo sobre a Filosofia. É ela quem conduz à ideia da unidade (não aparente) que existe por trás de toda multiplicidade do real. Tal força, que seria o deus primordial e criador para os mitólogos é definida pelos filósofos como o princípio racional (arché), a causalidade eficiente que origina todas as coisas, razão suficiente e necessária de tudo.
A transição do pensamento mitológico para o filosófico não se deu de forma pacífica, como se se tratasse de uma passagem que pudesse ser naturalmente entendida como parte de um processo evolutivo para um novo estágio do pensamento humano. Muitos dos primeiros filósofos, os físicos, deixaram bem claro suas críticas a qualquer forma de revelação divina, optando por investigar a realidade só pela luz da razão. Isso, apesar de suas doutrinas manterem importantes correspondências estruturais com as mitologias, conforme exposto acima. Coube a filósofos posteriores, como Platão, contemporizar tais críticas, absorvendo conteúdos mitológicos como meio de explicação de suas teorias racionais. Por cerca de dois mil anos prevaleceram de forma hegemônica, na Filosofia, as doutrinas com bases de inspiração originárias dos mitos e que consideram ser possível revelar, pelo intelecto, a causa primordial e unidade totalizadora do universo. É este o campo de estudos que passou a ser denominado Metafísica e está presente, por exemplo, nos sistemas platônico - que propõe uma divindade como origem e sentido do universo – e aristotélico - que sustenta a existência de um motor imóvel, o divino imaterial que é causa incausada do universo. O deus dos filósofos é um deus despersonalizado, tido como uma força cósmica e racional mas abriu margem para interpretações futuras que o personificaram e o revestiram de sacralidade, como foi o caso da filosofia escolástica. 
 
A partir do século XIV a Metafísica entra em crise a reboque do declínio do Império e da Igreja Católica, instituições que balizaram as leis e os costumes durante toda a Idade Média. A entrada definitiva da Filosofia na Modernidade, no entanto, deu-se cerca de três séculos mais tarde, a partir dos escritos de Renè Descartes (1596-1650). Foi ele quem deslocou o horizonte da investigação filosófica que até então priorizava a busca do conhecimento de Deus, considerado o conhecimento último e perfeito. Descartes começa por questionar a própria validade do conhecimento humano, buscando demarcar seus limites e aferir a consistência de seus resultados. Ele ainda determina como objetivos da investigação filosófica a interpretação do mundo e o estudo de si próprio, o que representa um rompimento inequívoco com a escolástica medieval por dar prioridade ao universo mundano, profano e laico em contraposição à primazia teológica defendida pelos filósofos medievais. Descartes não prescinde da existência de Deus mas não se interessa pela busca do Ser transcendente. Considera Deus apenas uma força infinita, eterna e imutável que garante o funcionamento do universo de forma regular e organizada, permitindo, assim, a produção de todas as coisas que existem. Trata-se, ainda, de um Deus impessoal que serve de fundamento metafísico para o conhecimento racional humano. Ao contrário dos escolásticos que apontavam o Ser Divino como princípio radical e causa de tudo no universo, Descartes defendia que o Eu-penso e o Eu-sou concluem as indagações sobre a realidade ontológica e a esfera gnosiológica. A substituição do tema Deus pelo tema Homem representou uma retomada do modo de filosofar dos primeiros filósofos gregos que optaram pela razão como meio de desvelar o universo, desconsiderando as revelações divinas. 
 
O ceticismo de David Hume (1711-1776) representou um duro golpe à Metafísica que já passava por uma crise sem soluções com o desenvolvimento acelerado das ciências. O filósofo inglês atestou que nenhuma experiência empírica poderia provar a existência de Deus, sendo, portanto, impossível aos homens conhecê-Lo. Com isso, desacreditou as pretensões humanas de chegar ao conhecimento de qualquer realidade metafísica. Immanuel Kant (1724-1804) procurou contornar o ceticismo de Hume. Ele concordou que a razão crítica ou pura é incapaz de produzir provas da existência de Deus, mas também não é capaz de negá-la. Defendeu a existência de uma outra forma de racionalidade que pode nos levar ao conhecimento de Deus. Kant chama o princípio desta racionalidade de razão prática, capaz de gerar a consciência moral, atividade que o filósofo alemão considera tão presente nos homens quanto o conhecimento científico. A consciência moral se forma por meio da vontade que torna o homem mais que um ser que é e o faz também um ser que deve ser. Dessa vontade é que surgem os predicados morais como bom, mal, justo e injusto que nos levam à concepção de um bem supremo que só existe como síntese de felicidade e virtudes. Para Kant, este bem supremo é Deus, fundamento e condição mesma da possibilidade moral e da felicidade. A palavra Deus deve ser entendida não como revelação divina mas como imperativo moral que temos dento de nós e que atende à nossa própria formulação do que seja o bem. Podemos, portanto, ser autônomos na construção de nossa conduta moral desde que sejamos capazes de fazer ou deixar de fazer algo com base em nossa própria escala de valores, orientadora da vontade, e não por coação ou imposição de regras formuladas exteriormente a nós.




A HERMENÊUTICA DE SCHLEIERMACHER


A compreensão hermenêutica Friedrich D. E. Schleiermacher.





Nos textos reunidos no livro “Hermenêutica, arte e técnica da interpretação”,Friedrich D.E.Schleiermacher expõe as limitações que encontra na interpretação hermenêutica que se fazia até as três primeiras décadas do século XIX. Ele critica filósofos e teólogos que seguiam o modelo tradicional com regras de compreensão específicas para cada área do conhecimento e propõe uma visão mais ampla desta arte interpretativa. Neste sentido, reúne elementos comuns que fazem com que a hermenêutica contribua na compreensão das diversas obras sobre as quais é aplicada e, a partir daí, começa a traçar seu conceito mais amplo e universal. Este conceito torna muito mais extensa a tarefa da hermenêutica que não fica mais restrita às Sagradas Escrituras, Clássicos da Antiguidade e textos jurídicos mas se estende por obras de todos os estilos, períodos e alcances intelectuais, abarcando ainda as conversações, discursos imediatos e obras não literárias.
O autor do livro delimita a área de atuação da hermenêutica entre as situações em que haja pelo menos algo em comum entre o intérprete e o autor da obra e, nesta, pelo menos algo de estranho que se queira conhecer. Para levarmos o procedimento interpretativo adiante, ele nos fornece algumas chaves que encontra nos hermeneutas de sua época e outras que ele mesmo propõe no sentido de tornar a interpretação mais precisa e totalizante. A proposta original de Schleiermacher é fazer com que a interpretação contemple as características linguísticas gerais e individuais de cada autor associadas ao exame psicológico mais profundo deste. Assim, o resultado do trabalho pode evitar o pedantismo - comum aos que fazem análises e comparações rebuscadas mas se esquecem do autor como um homem por inteiro - além de reduzir o risco de atribuir ao autor intenções que ele nunca teve - erro muito frequente entre os que conhecem bem o homem mas não têm domínio da linguística. 
Para Schleiermacher, as análises linguística e psicológica devem ser perpassadas pelos métodos de compreensão histórico-comparativo e intuitivo-divinatório. O primeiro se detém, por exemplo, ao exame das particularidades de uma obra dentro do contexto mais amplo das obras do mesmo gênero publicadas ao longo do tempo. O segundo prescinde de uma demonstração científica mas requer do intérprete uma visão abrangente de tudo o que envolve a obra - sua época, lugar, acontecimentos que a influenciaram, personalidades do autor e de seus pares contemporâneos, etc – para que o sentido mais amplo possível possa ser intuído como algo que alinhava todos os aspectos do contexto e que poderia ser chamado o espírito vivo da obra. Para o autor do livro, a adivinhação também se torna possível porque cada um de nós é uma manifestação do viver total, o que quer dizer que todos têm em si um mínimo de cada um dos demais e pode, por comparação consigo mesmo, compreender o outro.