segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A IDEIA EM KANT E EM OUTROS QUATRO.


 A IDEIA EM KANT COMPARADA AOS CONCEITOS DE IDEIA EM PLATÃO, DESCARTES, LOCKE E HUME.

Para Immanuel Kant, a ideia se faz por meio dos conceitos puros da razão que utiliza a unidade das regras do entendimento para atingir certos princípios que lhe conferem uma unidade racional. Ou seja, a unidade sintética das intuições (que é obtida de acordo com as normas das categorias), quando submetida à forma dos raciocínios, dá origem aos conceitos puros da razão ou ideias transcendentais. A ideia é, portanto, o incondicionado a que podemos chegar partindo do condicionado pelo entendimento. É também um conceito necessário da razão que não se originou de nenhum objeto sensível sendo, por isso, chamada transcendentaL. Ainda de acordo com o filósofo alemão, a ideia se forma devido à insatisfação da razão com o múltiplo dado na intuição, podendo ser definida como uma totalidade incondicionada, que está além de toda experiência possível. 
 
Este conceito de ideia kantiano diferencia-se do de Platão pelo fato de este último considerar as ideias como sendo algo muito mais que chaves para experiências possíveis, como sugeriu Kant: seriam, isto sim, arquétipos das próprias coisas derivadas da razão suprema que as transmitiu à razão humana. Assim, Platão elimina qualquer possibilidade de as ideias terem, como ponto de partida para serem formadas, a interação direta de nossa estrutura cognitiva com o mundo. Ora, isto se opõe ao pensamento kantiano para o qual o primeiro estágio de formação das ideias se dá pelas sensações, quando configuramos o mundo de acordo com o espaço e o tempo que são formas da sensibilidade.

O conceito de ideia de René Descartes assemelha-se ao de Platão quanto ao descrédito dado aos sentidos para nos fornecer elementos para formação de ideias verdadeiras. Segundo Descartes, o que garante a existência, em nós, de ideias claras e distintas é a ideia que posso ter de um ser perfeito, Deus, uma ideia inata e da qual não sou uma causa. É esta ideia que posso ter da substância infinita e da qual não posso duvidar que, segundo Descartes, permite a afirmação da existência do mundo exterior a nós. Assim, o conceito cartesiano de ideia contraria o conceito de Kant pois este não acredita em ideias inatas mas apenas em estruturas inatas que nos possibilitam a formação de ideias. São essas estruturas que garantem à nossa razão a capacidade de, em contato com o mundo, elaborar por si própria as ideias que fazemos do mesmo. Em vez de desconfiar dos sentidos, como o faz Descartes, Kant afirma que ideias verdadeiras são as que estão conectadas a este processo de elaboração de ideias pela nossa razão e que começa pelas sensações.

Para o filósofo John Locke, todas as ideias provêm da experiência que, ao longo da vida, vai deixando marcas em nossas mentes. A mente funcionaria como um receptáculo das sensações, o lugar onde estas, de uma em uma ou reunidas se uniriam à reflexão para formarem ideias simples. Ideias complexas seriam originadas por um conjunto de ideias simples. Portanto, para Locke, sensação e reflexão - que é um voltar-se da alma sobre si mesma para perceber o que nela ocorre - seriam as duas fontes do conhecimento. A grande diferença dos pensamentos de Locke e de Kant é que o primeiro acredita que as ideias que formamos na mente reproduzem fielmente a realidade mesma das coisas. Teríamos, portanto, em nossas mentes, um espelho da realidade, um aparato que nos possibilita ter acesso à verdade por ser capaz de obter uma correspondência do pensamento com a realidade. É uma teoria que nos conduz à problemática da metafísica já que o filósofo empirista não consegue precisar o que estaria por debaixo das diversas qualidades, sensações e impressões que as coisas nos produzem. Tanto é assim que Locke chama a coisa em si ou substância de “um não-sei-quê”. Kant, ao contrário, não acredita que podemos pensar a realidade como ela é de fato, em si mesma. Defende que só conhecemos das coisas que nos são dadas na experiência aquilo que delas temos a capacidade de captar por meio da estrutura cognitiva que nos é própria, ou seja, somos limitados para a compreensão do mundo, porém, não somos meros receptáculos passivos da realidade, mas sim sujeitos que construímos um sentido próprio para as coisas usando nossa razão e seus processos e métodos de compreensão do mundo.

Para David Hume, ideia é um tipo de percepção da mente formada a partir de uma ou mais impressões que são percepções imediatas e que ocorrem sempre no presente, no aqui e agora. Para o filósofo empirista, as impressões são muito mais vívidas que as ideias que seriam como retrados quase apagados ou cópias desbotadas das impressões. Como o conhecimento nos é dado pela experiência, ao entendimento humano não caberia nada além de associar corretamente as ideias de forma que estas correspondam à realidade que se nos apresenta de forma regular. Kant não desconsidera a importância da experiência para que possamos formar nossas ideias mas, segundo ele, para o desempenho desta tarefa a experiência só não basta. De acordo com o filósofo prussiano, ao contrário de ser um sujeito que apenas reproduz em sua mente, de forma automática, o que se passa no meio exterior a ele, o homem é dotado de estruturas mentais pré-estabelecidas e também de sua liberdade que o ajudam a dar um sentido todo próprio à realidade. A ideia, para Kant, faz parte de uma instância superior da razão e não corresponde a nenhum objeto dado pelos sentidos. É uma resposta da razão à sua própria insatisfação com a multiplicidade dada pela intuição e é capaz de reunir esta multiplicidade numa totalidade incondicionada que se eleva para além das possibilidades de experiência.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

HEGEL, MARX E A FILOSOFIA DA HISTÓRIA.

HEGEL E MARX NA FILOSOFIA DA HISTÓRIA.


1. “O real é racional e o racional é real”. Tendo presente tal afirmação hegeliana, explicite algumas das linhas gerais do pensamento hegeliano.

A frase de Hegel deixa clara sua visão da realidade como algo plenamente identificado com a Razão e nos revela o cerne de sua ontologia que procurava desfazer o dualismo da filosofia de Kant a qual estabelecia uma cisão inevitável entre o sujeito e a realidade das coisas em si. Hegel quer demonstrar que, uma vez que somos dotados de razão, somos capazes de conhecer a totalidade das coisas, bastando-nos, para isso, identificar a racionalidade que é sempre imanente a tudo. Para Hegel, a verdade não está unicamente nos objetos, ou seja, não há apenas uma razão objetiva, nem tampouco está a verdade exclusivamente no sujeito. Haveria, isto sim, uma unidade necessária do objetivo e do subjetivo que se realiza por meio da Razão. E é ela que nos permite conhecer as relações harmoniosas entre as coisas e as ideias, entre o mundo exterior a nós e a nossa consciência, entre o objeto e o sujeito. Essa unidade harmônica não é algo eterno mas sim uma conquista da Razão ao longo do tempo, portanto, uma conquista que se dá na História. Caberia à Filosofia a reconstrução do percurso histórico do Espírito Absoluto que é a manifestação da autoconsciência que se revela a si mesma ao longo da História. O filósofo alemão afirmou que a Razão sempre governou esse movimento do espírito que se processa dialeticamente por meio do confronto de ideias opostas e que realiza sínteses que sempre podem ser também  negadas por novas oposições.

2. Desenvolva uma reflexão apresentando algumas contribuições de Hegel para a Filosofia da História.

A contribuição mais importante de Hegel para a Filosofia da História encontra-se em sua obra mais famosa, o livro “Fenomenologia do Espírito”. Nesta obra, o filósofo vai de encontro aos pressupostos da lógica clássica que afirma que o ser jamais é não ser, que ser e não ser não se identificam e o que é é e o que não é não é. Ao contrário deste pressuposto que desvaloriza tudo o que se apresenta como contraditório em favor de uma concepção do ser como realidade eterna, imóvel e perfeita, Hegel considera a negação como o grande motor da história. De acordo com o filósofo, não haveria progresso do espírito se não houvesse uma permanente negação das ideias que faz com que, do confronto entre tese e antítese, surja a síntese que manifesta a realização do absoluto em uma época. Com essa visão, Hegel reabilita uma noção que vinha sendo desprezada ao longo da a História da Filosofia desde Platão, a noção de ser como um devir.O devir é o movimento dialético que leva o homem e o mundo no percurso histórico para a derradeira superação de todas as oposições, para a realização final do absoluto.  Para Hegel, no início de tudo temos, sim, um ser, mas um ser vazio que só irá se constituir como um ser pleno e absoluto depois de cumprida todas as etapas do percurso histórico em que a razão se realizou de forma necessária. E é justamente por haver na História a manifestação necessária da Ideia ou Razão Infinita que somos capazes de apreender seu sentido identificando o papel desempenhado por todas as contradições que se fizeram presentes ao longo do percurso histórico.

3. Quais as contribuições do Marxismo, em particular do Materialismo Histórico, para a compreensão da história humana?

A teoria de Karl Marx inverteu o conceito de dialética de Hegel. Para este, as ideias eram responsáveis pela criação das condições materiais dos homens. Para Marx, as condições materiais de existência é que dão origem às ideias. De acordo com a dialética de Marx, portanto, a sociedade é formada por contradições reais que se dão no plano da economia e que são refletidas pela ideologia que impera na esfera cultural.  A visão marxiana é consequência da prioridade dada pelo autor aos estudos sobre Economia Política, considerando esta como a ciência que forneceria a verdadeira elucidação dos determinismos da História. Para Marx, as estruturas sociais de todas as sociedades humanas baseiam-se num circuito que tem como mola mestra seus bens e serviços em sua cadeia de produção, distribuição e trocas. Por isso, para compreender a História, é preciso observar a dialética presente nos processos de permanente transformação do mundo. Processos que se revelam ao estudarmos a fundo as conexões existentes entre o homem, a natureza e as técnicas (ou seja, as relações das forças de produção) associando estas às formas de propriedade criadas pelo homem ao longo do transcurso linear do tempo. A explicação dialética de Marx para a História aponta a luta de classes como motriz fundamental da evolução da humanidade, luta esta que, conforme é postulado pelo determinismo histórico, deverá, necessariamente, desembocar na ditadura do proletariado.

Referências:
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2012.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A razão na História: uma introdução geral à Filosofia da História. São Paulo: Centauro Editora, 2001.
OLIVEIRA, Antônio Carlos de. Filosofia da História-Subsídio de Apoio Didático. Unicap, 2012.
SILVA, Franklin Leopoldo e.Hegel e a Razão Dialética como justificação do drama histórico. Palestra disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=hxFhMvy2FMg, acesso em 20/11/13.
  

domingo, 3 de novembro de 2013

GIAMBATTISTA VICO E A NOVA HISTÓRIA.

Síntese de artigo sobre Giambattista Vico do doutor em História pela UNESP, André Luiz Joanilho (Revista de Ciências Sociais, Vol. 9 - N.2/2004 - p. 67-84).

O napolitano Giambattista Vico (1668-1744).

Giambattista Vico (1668-1744) é considerado pelo historiador André Luiz Joanilho  o precursor da História Cultural, pois foi um dos primeiros pensadores a conceituar o homem em sua dimensão temporal e histórica. Vico fez parte de uma época em que uma das principais querelas entre os filósofos era a respeito da superioridade ou não dos modernos sobre os antigos. A partir de Francis Bacon, a disputa tendeu para o lado dos defensores dos modernos por conta da noção de que o conhecimento é cumulativo, o que quer dizer que quanto mais o tempo passa, mais capacidade têm os homens de compreender o mundo e a si mesmos. Vico entendeu que os antigos não eram superiores aos modernos mas essa posição ainda não o coloca como um dos precursores da ideia de progresso.  Para ele, a temporalidade não era algo que fluía sem interrupções mas sim com múltiplas recorrências que se manifestam de forma alternada e cíclica em função do bem e do mal, dois elementos da condição humana que são determinados e fixos.

Vico pode ser estudado como um filósofo que investigou a possibilidade de um conhecimento total, sem interrupções, um saber filosófico que Michel Foucault chamou de “mathêsis”, isto é, um conhecimento que se estende, sem cortes, pelas diversas ciências como a matemática, a astronomia, a medicina, a filosofia e assim por diante. De acordo com o filósofo napolitano, para atingirmos a “mathêsis” devemos dar à linguagem a condição de centro da atividade humana. A natureza se faz quando são cruzadas as palavras e as coisas, quando as coisas são nomeadas. Na idade clássica, a linguagem transcreve o olhar minucioso dos homens sobre as coisas, formando a mathêsis como uma contínua rede de conhecimentos Como homem de seu tempo, Vico deu tamanha importância à linguagem que adotou a filologia como um meio para entender as primeiras civilizações.  

André Luiz Joanilho nos alerta para o risco de concebermos o pensamento viquiano como precursor do que seriam as Ciências Humanas no século XIX. Para o historiador, a tendência de pensarmos de tal modo é alimentada por um artifício dos filósofos da história que tentaram legitimar suas teses considerando-as como resultados da continuidade de um progresso que teria Vico como ponto de origem. Assim, seriam os herdeiros de conhecimentos acumulados ao longo do tempo, estando, portanto, em condições de superioridade sobre os que não desfrutam de uma tal condição. O pensamento de Vico serviu a esse tipo de sistema devido à sua formulação de determinadas concepções de tempo. Mas, quando compreendemos o pensamento do filósofo napolitano dentro de suas própria época é que temos a melhor dimensão de seu ineditismo e de seu espírito provocador. Essa dimensão pode ser compreendida em sua pretensão de criar uma  nova ciência, que não se concretizou mas que propôs novas formas de compreender o ser humano e sua história.

NOVO CONHECIMENTO: VERUM/ CERTUM

Para Giambattista Vico, só podemos obter um tipo de verdade: aquela que é produzida pelo próprio homem. Esse pensamento foi uma corajosa afronta ao cartesianismo dominante na época que postulava que a Matemática era o único instrumento para compreensão do ser porque as certezas desta ciência não passam pelos sentidos, considerados fontes inseguras para o conhecimento. Descartes desprezava o que chamamos de Humanidades que, segundo, ele, contém apenas informações confusas e embaralhadas e, portanto, não seriam capazes de oferecer certezas. Mas são esses dois campos do conhecimento – História e Linguagem - que Vico elege  como os principais meios de atingirmos a verdade. Para ele, é em tudo aquilo que os homens fizeram que está a pista para se compreender a Providência e, assim, ter-se consciência da existência. Vico chama de arrogantes os  cartesianos que conheciam o verum apenas por abstrações.

Outros ramos do conhecimento não eram menosprezados por Vico pois, de acordo com ele, todos  têm em si a marca da criação humana sendo, por isso, meios para o conhecimento verdadeiro. Mas Vico afirma a superioridade da História por acreditar que sua principal característica está no que mais nos caracteriza como humanos: a imaginação. Para ele, esta é a faculdade com que podemos compreender as ações humanas, suas intenções ou os motivos porque agimos desta ou daquela forma. Assim, para Vico, o verdadeiro é o que é feito. Com o uso da razão imaginativa podemos entender o que fazemos na história.

Para Vico, a certeza é uma forma de conhecimento diferente da verdade. Para ele, a natureza e seus eventos podem ser estudados por ciências como a física e a astronomia que garantem certezas sobre o que existe mas não garantem a verdade pois, como os homens não criaram a natureza, não podem ter acesso às suas causas. Somente Deus pode ter acesso às verdades da existência por ter sido Ele o seu criador. Se Deus entende plenamente o sentido de sua criação, o homem pode apenas pensar sobre este sentido pois conhece  partes da totalidade do que existe. O conhecimento do homem só ocorre por abstrações, o que permite a ele procurar o que originariamente não possui para chegar às certezas de que precisa. Assim, é na história que o homem fabrica essa realidade e se torna consciente de si e de sua existência, adquirindo a certeza e se direcionando a Deus. Uma vez que somos criadores de nossa realidade, temos condições de conhecê-la em sua totalidade, uma busca que nos fará alcançar a divindade.

TEMPO E HISTÓRIA: UM MUNDO EM MOVIMENTO.

Vico pode ser considerado um dos precursores da ideia de processo histórico que atesta haver um encadeamento dos fatos de acordo com uma finalidade. O pensamento do filósofo italiano pode ter sido inspirado pela Biologia que identificou ciclos naturais que são cumpridos pelos seres vivos. À medida em que a história é encarada também como um processo, haveria também, então, ciclos históricos a serem cumpridos pelos homens. O desvendamento desses ciclos nos torna significativo tudo o que a História traz consigo.  Porém, é necessário uma ressalva pois apenas em parte a história é cíclica para Vico. Em parte ela tem uma temporalidade polifônica, ou seja, a estrutura temporal da história não é linear mas contrapontual, há inúmeras linhas de desenvolvimento sem que seja possível estabelecer coerência entre elas.  Portanto, para Vico, os homens não progridem mas vivem diversas temporalidades que se encontrarão na Providência.

Para Vico, a história humana é dividida em três grandes eras: a dos deuses, a dos heróis e a dos homens.  Essa explicação foi deduzida das obras literárias da antiguidade graças à pesquisa do significado de palavras e metáforas, ou seja, Vico compreendeu o mundo antigo por meio da linguagem. A primeira fase histórica teve início quando os homens se espalharam pela terra, logo após o dilúvio, e passaram a viver como animais. Imperava a lei dos mais fortes que faziam dos mais fracos seus servos. Na era dos heróis, os servos entram em conflito com os senhores reclamando igualdade. A hera dos homens tem início quando leis de igualdade passam a vigorar nas democracias ou repúblicas populares.

O filósofo italiano acreditava que os pensadores antigos não tinham conhecimento suficiente para compreender o mundo melhor do que os modernos. Além disso, como os antigos não conheceram outros homens além dos tipos rudes, incultos e cruéis, a linguagem dos primeiros escritores retratava essa realidade pois, para Vico, a forma de usar as palavras nos traça o desenho de uma época, com seus processos mentais, atitudes e perspectivas humanas. Pelo estudo da linguagem seríamos, então, capazes de revelar o modo de ser, agir e pensar de seus usuários já que as mentes são formadas pelo caráter da linguagem e não esta pelo caráter daqueles que a usam.  

Então, a forma escrita hieroglífica manifestava todo o temor que os homens sentiam na idade dos deuses e as metáforas poéticas serviam para reverenciar os deuses, relatando seus grandes feitos, as origens do conhecimento humano, da sociedade e da cultura do homem e, a fortiori, dos poderes dos homens primitivos de dar nomes aos objetos, dotando-os de atributos específicos. A etimologia das palavras indicava a circunstância material da existência humana. Na idade dos heróis , havia repúblicas oligárquicas dominadas pelos que se diziam descendentes dos deuses. A poesia retratava a avareza, a crueldade e a torpeza de uma época em que as leis poéticas são deturpadas pelos aristocratas para subjugar a população. Na idade dos homens, surge a lei da justiça democrática permitindo que houvesse o acompanhamento das discussões livres, dos argumentos legais, a prosa, o desenvolvimento da razão e a ciência. Ao deixar os mitos de lado o ser humano toma consciência de si. Na era dos homens, o conhecimento é superior por ser consciente.

Os homens são responsáveis pelos seus próprios atos apesar de estarem mergulhados na história. Os sinais que Deus deixa aos homens para serem desvendados é que fazem com que os homens descortinem a própria história. Assim, a consciência humana sente a presença de uma ordem providencial que a dirige mas não a determina. Só depois de experienciar a ordem providencial é que os homens podem interpretá-la. Depois da idade dos homens, instala-se uma época de luxos e excessos que levam ao declínio e uma nova barbárie tem início.

Para Robert Caponigri a temporalidade polifônica de Vico pode ser desvendada tendo-se em conta, primeiro, que se a Providência é imanente a lei do progresso deve ser também um princípio imanente. Não há necessariamente de volta absoluta aos tempos remotos depois do fim de uma nação, pois os homens tendem para o infinito e sua história continua na busca por uma consciência mais ampla. A história progride porque é temporal, sendo o tempo também imanente como a Providência que também é temporal. Tem-se, daí, que os homens só serão no tempo e só nele terão consciência da existência. A consciência é infinita justamente porque sua existência se dá no tempo  e, sendo a Providência também infinita, não há fim para todo o processo histórico. Para Vico, os conhecimentos do tipo verum e certum tendem a se reunir sem contradições no que seria o “fim da história” mas este nunca ocorre porque a existência se dá num processo que é algo que não tem fim.  O retorno dos tempos bárbaros, para Caponigri, é entendido não como um retrocesso mas como um retorno do homem sobre si mesmo num plano reflexivo, quer dizer, trata-se de uma revitalização, uma volta às virtudes primeiras mas num plano muito superior ao dos ancestrais.



sábado, 2 de novembro de 2013

A CONSTANTE AMEAÇA DO NAZI-FASCISMO.

Comentário sobre o filme "A onda fascista" - Alemanha,2008; Direção: Dennis Gansel. 






O filme “A onda fascista” nos mostra o processo e os resultados de uma experiência pedagógica feita com estudantes em uma das fases mais críticas da formação da identidade pessoal, a adolescência. É uma fase de maior angústia por conta da necessidade de tomar decisões que dizem respeito à própria vida, angústia que pode levar muitos adolescentes a atitudes que prometem anestesiar este sofrimento, como, por exemplo, o uso de drogas ou a filiação a grupos extremistas.  No filme, a experiência levada a cabo pelo professor de reproduz, em sala de aula, as principais características de um regime autoritário, demonstra como os adolescentes estão propensos a participar de grupos em que, supostamente, encontrariam suporte emocional, solidariedade e a proteção de um líder que seria capaz de guiar a todos ao tomar decisões em nome da coletividade, retirando de cada um o fardo das decisões  pelo próprio destino.

“A onda fascista” serve de alerta para a o risco oferecido por  grupos que dariam aos seus membros uma identidade previamente definida, programada, como um porto seguro onde questões existenciais estariam supostamente resolvidas e controladas. Participar do grupo seria, assim, manter a mente em uma zona de conforto semelhante a um imaginário útero psíquico que nos isentaria de conflitos morais uma vez que abdicamos da nossa capacidade de reflexão para seguir cegamente as determinações de um líder.

Uma ideologia autoritária que leva à formação de grupos, vai de encontro às teorias psicanalíticas que definem a identidade pessoal como algo que nunca é fixado em definitivo, imutável, permanente, mas sim como um processo, uma contínua construção pessoal que, justamente por isso (por ser pessoal), faz de cada um de nós um ser humano diferente dos demais. É no exercício da liberdade que “nos fazemos”, decidindo e escolhendo de acordo com aquilo que projetamos para o futuro. Entregar a um líder o poder de decidir e escolher sobre si próprio, sobre valores a serem adotados, aparentemente livra uma pessoa da angústia da tomada de decisões, mas, um dia, uma tal abstenção cobra seu preço em forma de um sentimento de extrema apatia ou depressão por encontrar-se violentado o princípio que mais nos faz humanos, que mais nos destaca da natureza: o princípio da liberdade.

No que se refere ao conceito de personalidade, o filme nos mostra o quanto a reprodução de ideologias autoritárias interfere no modo de ser e de agir dos que as  adotam já que a personalidade é formada pela interação de aspectos interiores e exteriores ao sujeito, ou seja, por uma combinação de fatores que definem as atitudes de uma pessoa dentro dos diversos contextos sociais em que ela pode estar imersa. Assim, há sempre um grau de coerência nos comportamentos que, nos regimes autoritários, são estimulados a exacerbar a agressividade e a violência, como bem o mostram diversas cenas do filme. Se esse distúrbio emocional volta-se para o exterior, para destruição até mesmo física do outro, há também um tipo de sentimento, potencializado pelas ditaduras fascistas, que se volta para uma destruição  interior, a da própria personalidade: é a submissão doentia a uma hierarquia verticalizada que impõe o medo por meio da violência e que pretende justificar-se afirmando ser necessária para a coesão do grupo.  No filme, esse transtorno de personalidade estimulado pelo ambiente é representado pelo estudante que passa a andar com uma arma de fogo nomeando-se uma espécie de chefe da guarda do professor que assumiu o papel de ditador.


Assim, a mensagem deixada pelo filme é a de que os jovens expostos a um ambiente  em que predomina o autoritarismo, têm grandes chances de moldarem suas personalidades potencializando comportamentos egoístas e violentos. Isso ocorre porque um tal ambiente faz reduzir, para os que nele convivem, o espectro de socialização por causa da impossibilidade que se cria de aceitação das diferenças sociais e culturais existentes fora do grupo. As implicações psicológicas de um regime autoritário são, portanto, as piores possíveis pois, ao nos despojar de nossa liberdade de escolha e julgamento, a ditadura nos torna menos humanos pois o que o que mais caracteriza a nossa espécie é o uso da razão para refletir e julgar por conta própria. Sendo menos humanos, ficamos próximos à fronteira da animalidade, dos seres que reagem irrefletidamente, apenas por instinto. Por isso, personalidades influenciadas por regimes despóticos, recorrem à violência ante qualquer fato que apenas suponham ser ameaçadores. A ação irrefletida é motivada por uma ideia cristalizada a qual costumamos dar o nome de preconceito. 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

KANT E O COSMOPOLITISMO

SOBRE A OITAVA PROPOSIÇÃO DE KANT, NO LIVRETO “IDEIA DE UMA HISTÓRIA UNIVERSAL COM UM PROPÓSITO COSMOPOLITA”.

De acordo com a oitava proposição de Kant, na História humana podemos observar o deslindar da realização de um plano oculto da Natureza que tem o ser humano como um meio para desenvolver todas as suas disposições. A História tenderia a um fim que seria a harmonia entre os homens, quando a felicidade de uns não causará a infelicidade de nenhum outro. Tal harmonia apenas se alcançará por meio da Ilustração que, se não for estimulada pelo estado, pelo menos não deve ser combatida por este. A Ilustração, que é o melhor caminho para se chegar à harmonia entre os homens, começa com a liberdade civil que amplia os horizontes de qualquer atividade profissional, principalmente as ligadas ao comércio, que garantem mais poder a uma nação em sua relação com as outras. Outro desdobramento da Ilustração é a tomada de consciência de que as guerras trazem inúmeros prejuízos, não só entre as nações em conflito mas também a todas que se beneficiam do livre comércio de seus produtos. Sendo assim, para Kant, o interesse mútuo das nações pela manutenção da paz, faz com que, aos poucos, o ser humano caminhe para um tipo de governança global que resultaria em um estado de cidadania mundial, propósito supremo da natureza. 

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

RESUMO DO DISCURSO DO MÉTODO - RENÉ DESCARTES






DISCURSO DO MÉTODO

QUARTA PARTE

Descartes mostra os fundamentos das suas meditações metafísicas. Primeiramente,  rejeita como falso tudo aquilo em que pode supor a menor dúvida. Os sentidos não são fontes  seguras de conhecimento porque muitas vezes nos enganam. Razões demonstrativas também não seguras, já que muitos homens cometem paralogismos. Outra situação que gera desconfiança é o fato de podermos supor que todas as coisas que entram em nosso espírito possam ser como as ilusões dos sonhos. No entanto, mesmo que todas as coisas sejam falsas, eu necessariamente, penso. Se penso, sou alguma coisa: penso, logo existo. Este é o princípio que Descartes considera o mais sólido para sua filosofia, pois não pode ser abalado por qualquer suposição dos céticos. Podemos supor que não possuímos corpo e que não há mundo ou lugar algum mas nunca podemos supor que não existimos. Mesmo o fato de duvidar da verdade das coisas atesta minha existência. Por isso, o eu é uma substância cuja essência ou natureza consiste no pensar e não precisa ou depende de lugar algum ou de qualquer coisa material. A alma é distinta do corpo e é mais fácil de conhecer do que ele.
Depois de encontrar uma proposição que julga ser verdadeira e correta, Descartes quer saber em que consiste essa certeza. Descobre que a regra geral para essas proposições é a de que devem ser claras e distintas. Outro objetivo de Descartes é tentar descobrir de onde aprendera a pensar em algo mais perfeito do que ele já que ele duvidava das coisas e a dúvida revela imperfeição. O conhecer é a perfeição que se contrapõe à dúvida. Nossa natureza, diz Descartes, também possui alguma perfeição. Em vista disso, ele diz que podemos julgar como verdadeiros pensamentos sobre muitas coisas que estão fora de nós, como o céu, a Terra, a luz, etc. Se estes são verdadeiros, são dependências de nossa natureza. Se são pensamentos falsos, existiriam pelo que possuímos de falho. No que se refere à ideia de um ser mais perfeito do que o nosso próprio ser, não é possível fazê-la sair do nada e é até repulsiva a ideia de que o mais perfeito dependa do menos perfeito. Por isso, é impossível sair de nós mesmos a ideia de um ser mais perfeito. Tal ideia, portanto, só pode ter sido colocada em nós por uma natureza superior e que possui todas as perfeições de que tenhamos ideia: Deus.
Descartes deduz que não é o único ser existente visto que admite conhecer perfeições que não tem. Se recebeu dele mesmo esse pouco com o qual participa do Ser perfeito, por que não receberia o restante que lhe falta para ser perfeito: eternidade, imutabilidade, onisciência, poder absoluto, infinitude e todas as demais perfeições que percebemos existirem em Deus? Este raciocínio nos leva a pensar a natureza de Deus como aquela  que podemos conhecer considerando se é perfeição ou não possuir qualquer ideia existente em nós mesmos. Assim, dúvida, inconstância, tristeza e outras ideias como estas marcadas pela imperfeição, não existem Nele. Todas as outras ideias marcadas pela perfeição, estas sim, existem Nele. Além do mais, a respeito das coisas sensíveis e corporais, não podemos negar que as ideias que presumimos serem falsas existam em nosso pensamento. E, se Descartes já havia reconhecido que as naturezas inteligente e corporal são distintas e que toda composição pressupõe dependência e que a dependência é uma falha, então, Deus, por ser perfeito, não pode ser composto dessas duas naturezas.  Daí que outros corpos, inteligências ou naturezas que porventura existam sem serem totalmente perfeitos, sejam seres que dependem do poder de Deus e que não subsistem sem Ele.
Depois disso, Descartes quis buscar mais verdades e examinou algumas das demonstrações mais simples dos geômetras. Concluiu que a grande certeza das afirmações se alicerça somente na evidência com que são concebidas mas nada nelas garante, de fato, a existência de seus objetos. A ideia de um ser perfeito, porém, inexoravelmente, inclui  sua existência, assim como, necessariamente, num triângulo,  seus três ângulos serão iguais a dois retos. A existência de Deus é tão certa quanto qualquer demonstração geométrica.
As ideias de Deus nunca estiveram nos sentidos, por isso a dificuldade que as pessoas têm de conhecê-lo. Mesmo os filósofos têm essa dificuldade quando acreditam que tudo o que existe em nosso entendimento, antes passou pelos sentidos. Sabemos, entretanto, que nossos sentidos e nossa imaginação não nos podem garantir coisa alguma sem a intervenção de nosso juízo. Usar a imaginação para compreender Deus é o mesmo que tentar  ouvir os sons ou sentir os odores utilizando-se dos olhos.  Quem não se convence da existência de Deus com esses argumentos, está ainda menos certo de que possui um corpo e de que existam astros e a Terra. A certeza moral dessas coisas é de tal ordem que só mesmo sendo extravagantes podemos duvidar de sua existência. Mas, quanto à certeza metafísica, é motivo suficiente para estarmos inseguros o fato de que muitos pensamentos que nos surgem em sonhos são mais vívidos do que os que temos acordados. Mesmo os grandes espíritos conseguem dirimir essas dúvidas apenas quando presumem a existência de Deus. Nossas ideias ou noções quando são verdadeiras e distintas são oriundas de Deus. Verdade ou perfeição não se originam do nada. Já as ideias que contém falsidade assim o são porque não somos totalmente perfeitos. Falsidade ou imperfeição não se originam de Deus.  Só depois de termos a certeza dessa regra graças ao conhecimento de Deus, compreendemos que os sonhos não devem levar-nos a duvidar da verdade dos pensamentos que temos quando despertos.    Uma ideia clara e distinta pode ocorrer mesmo quando dormimos. As ideias podem nos enganar estejamos dormindo ou acordados. Por isso, despertos ou mergulhados no sono, só devemos deixar-nos convencer pela evidência de nossa razão. Os sentidos nos enganam quando enxergamos o sol pequeno mesmo não julgando que seja do tamanho que o vemos. A imaginação pode criar um leão com corpo de bode mas não acreditamos por isso na existência de uma quimera. Isso ocorre porque a razão nos sugere que todas as nossas ideias ou noções devem conter algum fundamento de verdade. Deus, que é todo perfeito e verídico, não as teria colocado em nós sem isso.



sexta-feira, 13 de setembro de 2013

DAVID HUME

O "Ensaio sobre o entendimento humano", de David Hume, e a Teoria do Conhecimento. 

Seção 2 - Da origem das ideias.

Para David Hume, na quase totalidade dos casos, o conhecimento é adquirido por meio da experiência. O filósofo defende esta tese afirmando que os sentidos nos fornecem todo o material com que, depois, formamos nossas ideias e que, portanto, não há ideias que não provenham de experiências vividas à luz dos sentidos, com os sentidos. Hume hierarquiza as formas de percepção da mente dividindo-as em duas classes: as de maior vivacidade que atuam sempre que ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou exercemos nossas vontades e as que apenas representam as primeiras e são menos fortes ou vivazes, às quais chamamos pensamentos ou ideias. Estas últimas nunca atingem uma intensidade de vivência perceptiva como as primeiras pois são apenas um reflexo dos sentimentos ou sensações originais vividos por meio dos sentidos. 

Assim, para Hume, a lembrança de todas as emoções vividas intensamente durante um jantar a dois, por exemplo, nunca terá a mesma força ou vivacidade que a experiência vivida de fato; a recordação do grito histórico que fez eclodir uma revolução ou foi a senha para a proclamação da independência de um país, jamais terá a mesma carga de sensações do momento de fato em que o gesto ocorreu.  O filósofo sustenta que a força da experiência vivida é anterior e está na origem do grande poder criador da mente. Se esta é capaz de operar com as ideias de modo a compô-las, transpô-las, aumentá-las ou diminuí-las é porque o faz com o material fornecido, de antemão, pelos sentidos e pela experiência. Podemos, perfeitamente, compor a imagem de um homem com asas a voar sobre a cidade ou a de uma criatura que seja metade cavalo, metade ser humano. Em ambos os casos, os materiais do pensamento foram derivados da sensação e à mente ou à vontade coube apenas misturar e compor esses materiais. Resumidamente, as impressões (percepções mais vívidas) dão origem às nossas ideias (percepções mais tênues), cópias das primeiras.
 A ideia de Deus, para Hume, também não escapa desta teoria uma vez que esta ideia seria advinda de uma operação reflexiva de nossa própria mente que aumenta de forma ilimitada as qualidades de bondade, inteligência e sabedoria e as atribui a um Ser supremo. A operação mental que nos faz imaginar Deus, portanto, parte de atributos encontrados e vivenciados entre os próprios seres humanos. Os argumentos de Hume vão no sentido de que não existem pensamentos ou ideias a priori, ou seja, pensamentos que prescindem de qualquer relação com experiências vividas. Há, porém, um fenômeno que pode provar que nem todas as ideias provêm das experiências vividas por meio dos sentidos. É o caso, por exemplo, de um homem que, até uma certa idade de sua vida, nunca tivesse se deparado com um determinado tom de cor e fosse, um dia, apresentado a uma escala cromática com os vários tons mais fortes e mais suaves dessa mesma cor que ele nunca antes vira. Há de se supor que, por comparação, o homem conseguiria perceber qual o tom estaria faltando para completar a escala cromática. Seria uma forma de ter uma determinada ideia sem antes ter tido a experiência real, por meio dos sentidos, do objeto capaz de provocar essa ideia.

Seção 4 - Dúvidas céticas sobre as operações do entendimento.

No que diz respeito aos objetos da razão ou investigação humanas, David Hume sustenta a divisão destes em dois tipos: relações de ideias e questões de fato. No primeiro caso, incluem-se as ciências da geometria, álgebra e aritmética, além de toda  e qualquer outra afirmação intuitiva que contenha a principal característica destas ciências, qual seja, a de ser demonstrativamente certa. Quando afirmamos que “o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos”, expressamos uma relação precisa entre essas grandezas. Ao defendermos que “três vezes dez é a metade de sessenta”, afirmamos uma relação entre esses números. As proposições que emitem relações de ideias podem ser descobertas pela simples operação do pensamento, independentemente do que possa existir em qualquer parte do universo. Quando se trata de uma questão de fato, a evidência de sua verdade não é da mesma natureza que a das relações de ideias. Isso porque o contrário de toda questão de fato permanece sendo possível, não implicará em qualquer contradição. É por isso que se dissermos que “o sol não nascerá amanhã” não emitiremos uma proposição menos inteligível que a proposição “o sol nascerá amanhã”.
 Nas questões de fato, somente por meio da relação de causa e efeito podemos ir além da evidência de nossa memória e de nossos sentidos. Assim, quando temos a percepção do fato, podemos deduzir a causa deste por meio da imaginação e com ou sem a presença de uma evidência comprobatória, que seria como que uma suposta representante do fato. Se pedíssemos para alguém demonstrar o motivo de sua crença de que seu pai está nos Estados Unidos, esse alguém poderia nos mostrar uma carta de seu pai enviada dos Estados Unidos. Por isso, David Hume afirma que, nas questões de fato, há uma conexão entre o fato presente e o fato que dele se infere. Calor e luz são efeitos colaterais do fogo, e um dos efeitos pode ser legitimamente inferido do outro. Para o filósofo inglês, o conhecimento dessa relação em nenhum caso é atingido graças a raciocínios a priori, mas advém, isto sim, inteiramente da experiência. Para Hume, as qualidades dos objetos que aparecem aos sentidos jamais revelam as causas que o produziram e os efeitos que são capazes de produzir. Sem auxílio da experiência, nossa razão não é capaz de chegar a qualquer conclusão que se refira à existência efetiva de coisas ou questões de fato. 
 No caso de acontecimentos cotidianos que nos são conhecidos desde que viemos ao mundo, esta mesma verdade acerca das questões de fato pode não parecer evidente à primeira vista. Nestes casos, temos a tendência de pensar que poderíamos tê-los deduzidos pura e simplesmente por meio da razão, sem contar com a experiência. Seria como imaginar que, ao chegarmos a este mundo, já tivéssemos a noção de que a água, ao nos transmitir, pelo sentido da visão, apenas a qualidade de sua transparência, pudesse também nos fazer notar que ela é capaz de nos sufocar. É por isso que, para David Hume, é preciso sempre separar claramente os fatos de suas consequências. A postura cética alerta para a possibilidade de um efeito qualquer ligado a um determinado fato pode não se repetir indefinidamente por mais vezes que já tenha ocorrido ao longo da história. A crença de que um determinado acontecimento, pelo fato de ter se repetido várias vezes, vai continuar a ocorrer para sempre reproduzindo a mesma relação de causa e efeito deve ser considerada um hábito contra o qual devemos lutar pois, para Hume, o hábito além de encobrir nossa ignorância chega a ocultar-se a si próprio, parecendo não estar presente porque existe no mais alto grau. 








domingo, 7 de julho de 2013

A HERMENÊUTICA DE DILTHEY.

                    
                         Wilhelm Dilthey


Wilhelm Dilthey nasceu na Alemanha, em  1833, e morreu na Áustria, em 1911. Em 1883, sua obra, Introdução ao Estudo das Ciências Humanas, delineou as especificidades de método para estas ciências. A obra causou polêmica nos meios científicos e filosóficos onde predominava a visão positivista que defendia o uso das metodologias das Ciências Naturais para a compreensão do espírito humano.

Dilthey fez parte do chamado romantismo alemão e foi influenciado pelos trabalhos de Friedrich Schleiermacher. De acordo com a escola romântica, a interpretação hermenêutica de textos escritos ocorre quando o intérprete é capaz de penetrar e compreender o contexto histórico e cultural da obra, partindo de sua consciência de também estar situado dentro de um contexto de vida próprio.

Considerações iniciais

Dilthey reconhece uma natureza distintiva das ciências humanas, afirmando que seu campo de estudo é formado por atores humanos conscientes e não por organismos ou objetos apenas sujeitos às leis de causa e efeito. Por isso, Dilthey formula, para as Ciências Humanas, uma metodologia própria, com base empírica. que ele chama de Compreensão (Verstehen) e que influenciou as teorias hermenêuticas de Heidegger e Gadamer.  Em seu ensaio escrito em 1910, Dilthey define hermenêutica como sendo um conjunto de regras para interpretar obras escritas e afirma que o propósito desta ciência, além de estabelecer interpretações filológicas, é servir de anteparo contra a subjetividade cética e os caprichos românticos para consolidar a validade universal da interpretação histórica e fundamentar as Ciências Humanas. Para ele, as manifestações da vida têm regras permanentes que nos servem de guia para a interpretação. A exegese dos registros escritos, por meio da hermenêutica, é o ponto mais alto desta interpretação. Assim, a tarefa hermenêutica é demonstrar que é possível conhecer o nexo do mundo histórico e encontrar o meio de fazer isto.

Embora Dilthey ainda relacione a hermenêutica ao texto escrito, pode-se dizer que a esta ciência, sob sua ótica, é vista como o modelo para todas as formas de compreensão da vida da mente e do espírito. Seria, então, o modo particular de cognição que fundamenta metodologicamente as ciências humanas.

A Tradição Hermenêutica

Dilthey identificou 4 ideias cruciais na obra de Schleiermacher para o desenvolvimento da hermenêutica.

1) A análise da compreensão é o fundamento para a codificação da interpretação;

2)O interprete e o autor compartilham uma “natureza humana geral” que permite a compreensão dos outros;

3)Por causa desta “natureza humana compartilhada”, o intérprete pode recriar as ideias do autor; e

4)O interprete pode compreender o significado inteiro do texto a partir das palavras.

Explicação e Compreensão

Com a diferenciação de dois modos de cognição, Dilthey justifica, filosoficamente, uma metodologia para as Ciências Humanas e outra para as Ciências Naturais. O modo para as Ciências Humanas é a Compreensão (Verstehen); o modo para as Ciências Naturais é a Explicação (Erklären). Por métodos distintos, ambas as ciências produzem proposições válidas universalmente. A Compreensão ocorre quando o intérprete é capaz de reconhecer o estado interior de outra pessoa através das expressões empíricas desta outra pessoa. Ao ver uma expressão facial, por exemplo, o intérprete tem acesso ao estado emocional interior de alguém. As palavras de um texto são, também, manifestações empíricas do sentido intencionado pelo autor.

Compreender os outros

Wilhelm Dilthey considera que há regularidade e estrutura daquilo que consideramos universalmente humano. Podemos conhecer tal estrutura por meio das manifestações de vida que se dão de três formas:

Conceitos, juízos e formações de pensamentos maiores: afirmam a forma pela qual as coisas estão no mundo. São frases que sempre têm o mesmo significado, independentemente do ouvinte, como, por exemplo: “Chove lá fora”, “O carro passou na rua” e também as elaborações mais complexas das explicações científicas.

Ações: em si mesmas não comunicam, apenas indicam uma relação com um propósito.
Expressões da experiência vivida: manifestações empíricas conectadas com a memória ou com o estado psíquico interior do autor de uma tal expressão, cabendo ao intérprete desvendar o teor e o grau desta conexão.  

Para compreender uma outra pessoa por meio de suas manifestações de vida, Dilthey sugere os métodos da transposição e da recriação. A transposição procura as relações entre as expressões empíricas manifestadas pelo autor e os estados psíquicos interiores deste. O intérprete busca uma espécie de identificação com o autor ao tentar descobrir o caráter relacional que existe em sua própria experiência e que o leve a se ver na posição do outro. A recriação ou reexperiência é o inverso do processo criativo. Inicia-se a busca pela interioridade psíquica de um autor por meio de sua obra, expressão empírica de sua experiência vivida. A apresentação do meio é fundamental para que se compreenda o tipo histórico e cultural da experiência vivida. O intérprete também deve levar em conta suas próprias características humanas ao recriar a vida psíquica de outra pessoa. Assim,  atitudes, poderes, sentimentos, esforços, tendências e pensamentos próprios do intérprete podem ser aumentados ou diminuídos, por meio da imaginação, para que se experimente um estado interior que jamais foi vivido de fato pelo intérprete.  A tese de Dilthey baseia-se no pressuposto de que o espírito objetivo possui uma ordem articulada em termos de tipos humanos. O ponto crucial da tese é a afirmação das conexões existentes entre as experiências de vida e suas expressões empíricas, aprendidas quando uma criança adquire cultura. Estas conexões permitem que compreendamos uns aos outros. Sem elas, não haveria possibilidade de comunicação entre os seres humanos. É por meio da Hermenêutica que podemos compreender as regras permanentes de manifestação da vida presentes na linguagem, considerada a expressão mais completa da mente ou espírito humano.




sexta-feira, 28 de junho de 2013

ANÁLISE DO LIVRO "O ENIGMA DA RELIGIÃO", DE RUBEM ALVES.

       Deus existe? Se existe, como se manifesta?


No livro “O enigma da religião”, o teólogo Rubem Alves nos apresenta a perspectiva de sentido para a religião que a fez sobreviver às severas críticas e rejeições feitas, principalmente, por pensadores do século XIX. Tal perspectiva nem de longe passa pela articulação e justificação de uma estrutura religiosa dogmática como a que vigorou durante a Idade Média. Para o teólogo, não há como retomar um modelo de religião já flagrantemente demolido pela Ciência quando esta desvelou a previsibilidade da natureza e nos fez perceber o mundo como algo passível de ser manejado por nós em vez de  dependente dos desígnios de Deus. No caso das descobertas de Galileu Galilei, por exemplo, a reação repressora dos eclesiastas ao que poderia ser encarado como uma simples descoberta da Ciência, foi o maior indício de como todo um sistema de pensamento percebeu-se ameaçado de morte. A revelação de que o céu e os astros podem estar acima, abaixo ou ao lado da terra, conforme nossa localização no espaço, bastava para implodir a ideologia que predominou ao longo de toda uma era. O Deus medieval - sustentáculo da estrutura hierarquizante com a qual a Igreja  organizava o universo, subindo do nível mais baixo até as esferas no mais alto grau de densidade do ser - foi destronado e posto à margem da realidade do mundo que nos cerca. Além disso, para o teólogo, o Deus morto pela Ciência já transitava por entre nós enfraquecido pelas formas institucionalizadas da religião que, quanto mais racionalizam, teorizam ou ritualizam, no cotidiano, acontecimentos autênticos e originários do passado, mais afastam o homem da experiência do mistério.
No entanto, Rubem Alves não aceita os pressupostos dos contestadores da religião que defenderam o uso da razão  como o único meio válido de o homem interpretar o mundo. Segundo Alves, o Iluminismo supervalorizou a objetividade científica, desprezando a subjetividade onde se formam as significações humanas. As correntes de pensamento que se destacaram partir do Iluminismo consideraram a religião um produto da imaginação que deve ser rejeitada pelo fato de não refletir a realidade, sendo apenas uma expressão dos nossos desejos. Partindo deste pressuposto que desqualifica a imaginação, Freud encara a religião como uma forma de neurose coletiva, uma vez que, por meio dela, o homem nega a realidade objetiva simplesmente porque esta se interpõe como obstáculo à realização de seus desejos. Para Freud, a religião não resiste às exigências da razão e da experiência, o que a afasta do interesse do homem que cada vez mais se realiza como um ser científico.
Rubem Alves revela que a mesma ideia de religião como algo a ser superado encontra-se em Karl Marx, para quem a religião não contém nenhuma verdade sendo apenas mero efeito de uma situação. Para o filósofo alemão, as condições objetivas da vida é que fazem com que o homem lance mão de mecanismos mentais que o fazem transpor a realidade de forma ilusória. A religião seria, portanto, uma projeção invertida do sofrimento gerado pela opressão a que o homem se encontra submetido. É por isso que, para Marx, o que importa é a transformação da realidade em que vive o homem para que esta esteja cada vez mais adequada às possibilidades de realizações de seus anseios, condição que, quando atingida, tornaria a religião desnecessária. Marx considera a religião  uma via de alienação das consciências pois esta, para não correr o risco de ser superada, acena com uma impalpável recompensa de plenitude existencial em outro mundo aos que sofrem com as injustiças derivadas da estrutura social, em vez de propor soluções que levem ao fim das  desigualdades. A tomada de consciência dos homens a respeito das estruturas injustas da sociedade teria como consequência fatal a aniquilação completa das religiões sustentadas por ilusões extra-mundo.
Depois da demolição do castelo de Deus, Rubem Alves aceita a ideia de que Ele esteja morto mas ressalva que o assassinato foi cometido contra o deus-ídolo que o homem construiu como objeto apartado de si e que acabou por se tornar um tirano voltado contra nós por ser também um sujeito onisciente e onipotente que nos vê como seu objeto e perscruta todos os recantos de nosso ser. Alves concorda com Nietzsche ao afirmar que tal morte nos foi benfazeja porque nos abriu um horizonte de desenvolvimento de nossa própria autonomia, já que nossa condição anterior de dependência de Deus nos mantinha em um estado de completa atrofia das potencialidades humanas. Espaços de nossa realização antes obstruídos pela ideologia religiosa repressora do corpo podem ser agora reconquistados com atitudes de afirmação da vida. Ficamos mais livres dos limites apolíneos da forma que massacravam a espontaneidade das manifestações dionisíacas de vitalidade humana. A imagem de libertação criada por Nietzsche é a da transformação do camelo obediente que se curvava diante do poder identificado com o sagrado, num leão capaz de pulverizar o dragão da maldade que o oprimia.
 Mas, se o Deus que foi morto não é o Deus verdadeiro, como este, então, seria? Como defini-lo? Segundo Rubem Alves, a resposta pode ser encontrada partindo-se de uma valoração positiva da imaginação como uma das formas fundamentais de operação da consciência, o que se opõe à tese de Freud que via a imaginação como sintoma de doença, manifestação da neurose gerada por desejos reprimidos. Para Alves, é da imaginação que deriva a própria consciência racional pura, descrita por Kant, pois não encontramos esta como um dado de nossa experiência. Trata-se de uma forma idealizada de consciência surgida graças a condições históricas bem definidas. Segundo o teólogo, a mente humana não é capaz de um conhecimento objetivo no sentido radical do termo. O homem pode até apreender cientificamente a realidade mas não deixa de definir suas buscas e vislumbrar suas descobertas pelo prisma de seus anseios, aspirações e desejos surgidos da imaginação.
É a imaginação que nos alça da condição animal, pois nos liberta das determinações do mundo. Ao imaginarmos coisas, percebemos que o real sempre nos apresenta uma dimensão ainda maior que ele, a dimensão do possível. A percepção do mundo dos animais é limitada à experiência, às sensações. De acordo com Rubem Alves, ao utilizar a  imaginação religiosa o ser humano escapa da condição animalesca, uma vez que esta imaginação é capaz lançar no espaço todo o sentido do humano, preservando assim seus domínios psíquicos das forças do caos destruidoras do sentido do universo que criamos para nós. É com esta criação de sentido que o homem reage à indiferença da natureza que pode reduzir tudo ao nada, ignorando a existência humana até mesmo ao destruí-la. Assim, apesar da angústia permanente causada pela ameaça da redução do Ser ao nada, o homem afirma sua potência para humanizar o cosmos. E o faz com valores que foram gerados a partir de sua experiência, a partir de sua  relação com o mundo que se manifesta para ele. Sendo a intenção religiosa uma intenção ética, é por meio dela que o homem é capaz de pensar as realidades que se aproximam de sua utopia. E é dentro desta consciência das possibilidades e das potencialidades humanas que, segundo Alves, transita o Deus vivo.  Ele se manifesta por meio de nossa coragem,  esperança e vivência de uma fé que não precisa de Deus como objeto pois trata-se de uma fé que parte de nós em direção a nós mesmos:  a fé no viver espontâneo, na busca livre do sentido existencial. Inventando sonhos que liberam as potências do real e do possível e agindo corajosamente na realidade para adequá-la aos nossos projetos, é assim, que para Rubem Alves, podemos encarnar o Deus vivo.



O teólogo Rubem Alves.




quarta-feira, 10 de abril de 2013

HERMENÊUTICA - ARTE E TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO - FRIEDRICH D.E. SCHLEIERMACHER.

Resumo das partes A e B do livro "Hermenêutica, arte e técnica da interpretação", editora Vozes.


Parte A
De acordo com Schleiermacher, toda compreensão de discurso estranho é considerada uma interpretação. Para ser executada de forma mais aprofundada, esta atividade deve seguir regras de disciplina. É preciso haver um método adequado para que o trabalho exponha de forma científica toda a extensão e as razões de ser do processo interpretativo. Para Schleiermacher, os métodos disponíveis à época (1829) eram imprecisos, com regras às vezes claras, outras vezes muito confusas. Não havia algo que esboçasse o todo da Hermenêutica. Além disso, tais regras eram aplicadas apenas às obras da Antiguidade Clássica e às Sagradas Escrituras.
Schleiermacher decidiu, então, justapor dois autores com diferentes características de interpretação: Wolf - que evita a forma sistemática - e Ast – que adota esta forma por acreditar que nenhuma teoria pode ser comunicada cientificamente sem espírito filosófico. Eles têm, no entanto, opiniões semelhantes quanto à gramática, à hermenêutica e à crítica. Para Wolf, tratam-se de estudos preparatórios que abrem o acesso à esfera das disciplinas propriamente filológicas, como um órganon da ciência da Antiguidade; Ast quer tratar as mesmas disciplinas como apêndices da filologia, daí a necessidade de um tratamento científico para elas.
Schleiermacher diz que a hermenêutica era empregada apenas por filólogos clássicos e teólogos filólogos, e defende que ela tem um serviço a prestar muito maior. Opinião contrária à de Ast para quem o objetivo da hermenêutica é a produção da unidade da vida grega e cristã. Wolf afirma que a hermenêutica é muito imperfeita enquanto teoria. Para justificar essa posição, aponta pesquisas em regiões intermediárias como o significado das palavras, o sentido das frases e o encadeamento da fala. Mas, no texto de Wolf, Schleiermacher destaca uma declaração que vai ao encontro de sua tese. Declara Wolf que a hermenêutica é a arte de descobrir os pensamentos de um autor, de um ponto de vista necessário, a partir de sua exposição, o que combina com o pensamento de Schleiermacher para quem, onde quer que existam escritores a hermenêutica pode executar o seu trabalho. Este último situa a área de atuação da hermenêutica entre as situações em que absolutamente nada pode ser compreendido por um intérprete e aquelas em que há total compreensão do discurso durante a leitura e a audição. Portanto, deve haver pelo menos algo em comum entre o intérprete o autor do discurso e pelo menos uma coisa de estranho que careça ser desvelada.
Schleiermacher quer mais para a hermenêutica: defende que ela seja empregada não apenas em trabalhos escritos de toda ordem mas também às conversações e discursos imediatos. Outro dogma que pretende derrubar é o que define como estranho apenas aquilo que está escrito em língua estrangeira. Para o filólogo, teólogo e filósofo alemão, a hermenêutica pode servir também para interpretar ensaios escritos sem grande conteúdo intelectual, narrativas com vocabulário simples e até mesmo anúncios publicitários. É que, para ele, existe sempre o estranho nos pensamentos e expressões de um outro. A mesma arte pode ser empregada para a compreensão de textos escritos ou discursos orais com a única diferença de que, em uns, certos motivos são mais ressaltados e outros ofuscados, e inversamente no outro. A maior vantagem da interpretação de conversações significativas é que nelas o ouvinte conta com “a presença imediata do falante, a expressão viva que manifesta a participação de todo o seu ser espiritual, a maneira que ali os pensamentos se desenvolvem a partir da vida em comum”. Schleiermacher também levanta um protesto contra a tese de Wolf de que os pensamentos do autor devem ser descobertos com um conhecimento necessário. Para ele, há muitos casos em que esta fórmula não é adequada pois uma palavra pode ter diversos significados, dependendo do contexto em que é empregada. A evidência necessária fica sem lugar pois é possível provar, a partir de um dos pontos de apoio algo bem diferente daquilo que se prova a partir de outro ponto.
Na interpretação hermenêutica é preciso adivinhar, na reunião e na ponderação detalhada dos momentos históricos, o modo de combinação individual de um autor que teria sido diferente se executado por um outro autor. São casos em que a convicção pessoal pode ser comunicada facilmente a outros intérpretes mas não é preciso exigir de um trabalho como este a forma da demonstração. Trata-se de um tipo de certeza mais divinatória que surge quando o intérprete se envolve inteiramente com o estilo e o trabalho do autor. Para interpretar os textos clássicos, a intuição divinatória pode se fazer presente depois de um extenso engajamento com a pesquisa histórica por meio da qual o hermeneuta não apenas recolhe informações sobre a Antiguidade mas também é capaz de criar uma conexão espiritual própria com as formas da existência humana daquela época e com a constituição particular dos objetos de então. Só assim terá a firmeza divinatória para traçar elegantemente uma representação grega ou romana com o que mais nos impressiona nos dias atuais. A habilidade divinatória, portanto, surge do conhecimento tornado vivo graças ao exercício das diversas formas de exposição e dos limites e liberdades que lhe são próprias. Daí a exigência de Wolf quanto à habilidade própria do hermeneuta na composição antiga.
A diversidade de formas de expressão surgidas em uma língua, tais como as diferentes formas da arte da oratória e os diferentes tipos de estilo, fazem-nos demarcar dois períodos opostos. O primeiro é o período em que estas formas, aos poucos, se estabelecem. O outro é aquele em que as formas dominam. Se o escritor pertence ao primeiro, ele estava inserido nesta atividade contando apenas com a sua força produtora genuína e torna-se possível notar o seu poder ao examinarmos até que ponto sua criação fixou formas na língua. Uma semelhante potência pode ser observada, ainda que de modo secundário, naqueles que modificaram essas formas de modo particular fundando um novo estilo. O compositor que pertence ao segundo período não engendra uma forma mas compõe e trabalha sob os preceitos dela. A forma já fixada é uma força ordenadora. Sem a percepção desta relação de um autor com as formas já estabelecidas em sua literatura nem o conjunto nem o detalhe podem ser compreendidos corretamente.
A soma dos procedimentos comparativo e divinatório pode ser capaz de fazer com que o intérprete compreenda um autor melhor do que este pode se compreender. Ao método comparativo cabe a análise gramatical da obra, uma vez que a comparação insistente e contínua de palavras e expressões é capaz de tornar cada vez mais restrita a não compreensão de um termo. Ao método divinatório cabe a análise psicológica voltada para a compreensão do processo interno dos poetas e outros artistas do discurso. O processo metódico da interpretação atinge completamente o seu objetivo quando nossa atenção é dirigida para a produtividade do autor e para a totalidade objetiva da língua.
Parte B
Scheleiermacher concorda com Ast que expôs o princípio hermenêutico segundo o qual o particular não pode ser compreendido sem a compreensão do todo e esta não pode ser compreendido sem a compreensão do particular. Já as primeiras operações desta arte não podem ser estabelecidas sem o emprego deste princípio sob o qual repousa grande quantidade das regras da hermenêutica. O sentido de uma palavra num texto deve ser buscado por meio de um procedimento de descoberta do real valor linguístico desta palavra na posição em que ela se encontra. A parte do valor linguístico que pode ser aplicada é definida pela relação que a palavra mantém com as outras palavras do entorno, principalmente com aquelas em que fica estabelecida uma relação orgânica mais próxima. Isso significa que a palavra é compreendida como parte do todo, como elemento do conjunto.
Podemos dizer o mesmo de um encadeamento maior de frases. Há que se descobrir o conceito principal que domina cada articulação encadeada de frases. Importa saber com que exatidão se deve tomar uma série de rases e de que ponto de vista se deve apreender seu encadeamento, onde se deve conhecer o todo ao qual elas pertencem. A compreensão gradual de cada particular e das partes do todo que se organiza a partir delas, é sempre provisória. Quanto mais avançamos, , mais tudo o que precede é esclarecido pelo que se segue ainda que haja momentos de crepúsculo do entendimento no início de cada parte nova. É só no final que cada particular recebe sua plena luz e se apresenta com contornos puros e determinados. O conselho de Ast é começarmos toda a compreensão com um pressentimento do todo. No caso das obras escritas, os prefácios, mais que os títulos, são uma forma de se ter acesso a este pressentimento. Resumos e índices também nos fornecem uma intuição da articulação de uma obra. Com eles podemos concatenar as palavras principais que dominam as partes maiores e menores. Na falta destes recursos, o simples folhear do livro pode ser de grande valia antes do engajamento profundo na obra.
Ast amplia ainda mais a tarefa ao explicar que, assim como a palavra está para a frase, e a frase particular para a sua articulação mais próxima e esta para a obra mesma, como um elemento em relação a um conjunto e uma parte ao todo, assim, por sua vez, cada discurso e cada obra escrita é um particular que apenas pode ser compreendido completamente a partir de um todo ainda maior. Cada obra é um particular no domínio da literatura ao qual pertence e forma com outras obras de mesmo conteúdo um todo a partir do qual ela deve ser compreendida sob uma referência, a saber, a linguística. Cada obra deve ser também compreendida de acordo com a totalidade das ações do autor. Scheleiermarcher atribui ao intérprete linguístico toda a tarefa de apreender a obra particular na sua conexão com as que fazem parte do mesmo estilo literário. Para ele, isso se justifica porque as formas de toda composição se configuram a partir da natureza da língua e da vida comum desenvolvida simultaneamente e ligada a ela. Aqui, o individual pessoal fica em segundo plano. Já os que querem espreitar um escritor desejará ter uma visão viva de tudo o que se refere de alguma maneira ao processo de invenção. A intenção é perceber como se relaciona nele toda a empresa da composição à totalidade de sua existência. O intérprete do último tipo, ao se aventurar no domínio da interpretação linguística corre o risco de se revelar como um espírito nebuloso. É frequente que tais intérpretes atribuam aos autores intenções que eles nunca tiveram. Por outro lado, o hermeneuta com capacidade de estudos linguísticos arrisca-se ao pedantismo quando se atem apenas às análises perspicazes com comparações e conexões de uma obra com outras de seu gênero. Isso porque faltaria a ele para ver na obra o homem inteiro.