domingo, 16 de dezembro de 2012

PLATÃO X ARISTÓTELES.






A maior parte da filosofia de Aristóteles era naturalista e empirista, ao contrário da filosofia de Platão que enfatizava o mundo da ideias, para ele um mundo supremo, superior e independente do plano físico, considerado mera projeção das ideias que existiriam por si sós. A valorização aristotélica do mundo empírico que, para Platão, é visto como falho e insuficiente por estar sujeito a mudanças e à decomposição, foi como uma implosão das bases que sustentavam o "céu" platônico, realidade transcendental que só poderia ser contemplada aparteada de nossa materialidade concreta.
          A profunda desconfiança naquilo que apreendemos por meio dos sentidos implicava a projeção para fora de nossa vida cotidiana de um mundo perfeito, ideal, que poderíamos vislumbrar depois de uma reeducação de nossas almas, já que estas, um dia, tiveram contato com as puras ideias e preservam a memória desse convívio. Se, para Platão, a realidade transcendente das ideia é que provoca a existência e dá sentido às coisas do mundo empírico, para Aristóteles são as coisas mesmas, concretas, que, depois de observadas e compreendidas pelos homens, revestem-se formas, ou seja, passam a constituir as ideias que nos fazem compreender o mundo.
          Em tais questões relativas às considerações do corpo físico e à imortalidade da alma, a sensibilidade de Platão demonstrava  as influências que sofrera a partir do contato com a escola pitagórica e com as religiões de mistério, principalmente o orfismo.  Estas influências que se faziam muito presentes na Grécia Antiga, eram parte da mentalidade de uma época, daí o motivo pelo qual as ideias de Aristóteles causaram espanto e até escândalo entre os gregos.  Uma vez que o mundo dos sentidos, para o estagirita, poderia ser a sede do conhecimento humano bastando, para isso, observar padrões e processos empíricos, o enfoque religioso e transcendental passa a se desvalorizado. O dualismo platônico que em suas formulações mais extremas acarretava uma total ruptura das Formas em relação à matéria, é desfeito por Aristóteles para quem as coisas são, cada uma delas, uma entidade vital composta produzida pela união da Forma com a matéria numa substância. Agora, a Forma só pode existir se estiver incorporada na matéria, formando com ela uma substância.
          O escândalo causado pelas ideias do estagirita no mundo grego continuou a se propagar pelo mundo ocidental no decorrer dos séculos. Issos porque o Cristianismo que ganhou forças no mundo ocidental  teve suas primeiras bases filosóficas influenciadas, principalmente, por Sócrates/Platão e sua teoria dos dois mundos cuja visão subjugava o corpo por considerá-lo  uma prisão da alma. A Patrística, nome dado à Filosofia Cristã dos sete primeiros séculos, foi elaborada pelos padres da Igreja. Consiste na elaboração doutrinal das verdades de fé do Cristianismo, usada também na defesa contra os ataques dos "pagãos" e contra as heresias. Seu principal expoente foi Santo Agostinho que cristianizou algumas das ideias platônicas, o que permitiu um fortalecimento do culto cristão e a ascensão do poder eclesiástico.

Metafísica de Aristóteles.


No capítulo 2 do livro da Metafísica, Aristóteles nos assegura que nenhuma das causas dos seres é infinita. As causas material, formal, eficiente e final têm todas um princípio. Para ele, é impossível haver uma série de causas infinitas, tanto do efeito para a causa (ordem ascendente) quanto da causa para o efeito (ordem descendente). O filósofo estagirita admite situações com estágios intermediários entre a causa princípal e a final mas também alerta  quanto à impossibilidade de estágios sucessivos que podem ser separados ad infinitum. Para ilustrar sua tese, Aristóteles cita o exemplo do homem que é gerado a partir da criança. É um caso em que há espaço para o devir, um momento entre o ser e o não ser, entre o que é e o que não é. Já no caso dos elementos (água, terra, ar e fogo) que se transformam uns nos outros, o filósofo afirma que as formas se sobrepõem sem necessidade de pontos intermediários.
De acordo com Aristóteles, na ordem da causalidade formal, se houvesse causas infinitas seria impossível chegarmos a qualquer tipo de conhecimento. Há, necessariamente, um primeiro termo que é a quididade ou substância que permanece como algo indiviso e, por isso, se nos apresenta de modo inteligível e não como algo cuja definição pode ser ampliada indefinidamente. Para ilustrar a tese, o filósofo argumenta que seria impossível pensarmos em uma linha se imaginarmos pontos que jamais se unem por conta de infinitas divisões entre eles. Assim, ele afirma não ser possível pensar ou estabelecer a quididade infinita. Quanto à causa "para que", a causa final, Aristóteles afirma que ela é a causa que não existe em vista de outra coisa, as outras coisas é que existem em vista dela. E, se existe um tal termo final, não haverá infinito. Para ele, ninquém empreende alguma coisa se não pretende chegar a um objetivo final e, se não houver essa pretensão, não haverá inteligência em tal ação. Quem admite o infinito destroi a natureza do Bem.

A ORIGEM DA FILOSOFIA;PHYSIS;HERÁCLITO E PARMÊNIDES.





Heráclito, de costas para ...
... Parmênides, na famosa pintura de Rafael.















O surgimento da Filosofia está diretamente relacionado às profundas transformações econômicas, políticas e sociais ocorridas no  seio da cultura grega entre os séculos VI e V a. C. Este período em que se intensificaram as navegações e o comércio com os povos do oriente, teve como consequência o florescimento das cidades e a derrocada da antiga ordem que consistia em um sistema de poder altamente centralizado, cujo monarca detinha as autoridades política, militar e religiosa.
O fortalecimento de classes até então excluídas do processo de liderança do estado, notadamente a dos comerciantes, abriu caminho para uma nova ordem que, ao legitimar-se, incorporou ao cotidiano novos valores sociais, tais como o da crença na capacidade de todos os homens de desenvolver múltiplos conhecimentos e habilidades. Com isso, as virtudes necessárias para exercer qualquer tipo de comando, seja ele político, militar ou religioso, passaram a ser consideradas não mais como dádivas dos deuses a alguns escolhidos, mas sim atributos que podem ser adquiridos com esforço na busca pelo aprendizado.
Uma nova mentalidade que, evidentemente, não se instaurou de roldão como onda de tsunami que em minutos a tudo abarca, mas antes como a mina d´água que, a princípio, poucos humanos percebem tratar-se da origem de um grande rio. Estes poucos, na Grécia Antiga, foram os primeiros filósofos. Ainda em meio à cultura dos mitos, que interpretava o universo como  espaço de criação e constante manifestação dos deuses, tiveram  eles a ousadia de tomar as rédeas do pensamento ao buscar com o uso da própria razão humana respostas a uma questão que sempre intrigou a humanidade: como surgiu o universo?
Séculos mais tarde, ao ordenar e sistematizar o pensamento filosófico desenvolvido até sua época, Aristóteles chamou estes primeiros filósofos de Pré-socráticos. Tal denominação aponta para a mudança de foco dada à especulação filosófica a partir do filósofo Sócrates, em Atenas. De fato, como demonstrou Aristóteles, antes de Sócrates os filósofos tiveram em comum a preocupação de desvendar as causas do surgimento do universo e de tudo o que nele existe: astros, mares, continentes, florestas, seres humanos e animais. Para eles, mesmo o psíquico e a alma pertencem ao plano físico, o que nos leva a concluir que os temas essencialmente humanos também interessavam aos Pré-socráticos. Foi por atestarem a preponderância do mundo empírico, que também foram chamados de físicos.  

 A Physis.

A palavra physis nos remete a um conceito comum a todos os filósofos pré-socráticos. Ela significa o que está subjacente ao universo como causa geradora deste e da diversidade de coisas que nele encontramos. Physis também pressupõe uma ordem ou lei que determina a renovação e o desenvolvimento do que foi gerado. Ao darem prioridade à investigação da physis, os pré-socráticos têm a intenção de encontrar explicações que possam dar conta da realidade como um todo, buscam um princípio único que seria a causa de todas as coisas.
Cada um dos pré-socráticos procurou apontar ou aprimorar a definição deste princípio único que determina e dá sentido ao universo. Para Thales, o primeiro a buscar na razão humana explicações até então confiadas aos deuses, este princípio era a água. Segundo Aristóteles, a conclusão a que chegou o filósofo de Mileto derivou do raciocínio de que é úmido o alimento de todas as coisas e até mesmo o quente se gera e vive no úmido, portanto, nada mais correto e justo do que atribuir ao úmido - ou à água - a origem de tudo.
Anaximandro mantém a perspectiva de Thales ao imaginar um princípio único para as coisas, mas não determina um elemento concreto, do mundo empírico, como fonte geradora primária. Prefere chamar tal princípio de ápeiron , que significa "o sem limite", "o sem determinação". É como se Anaximandro apreendesse o significado de fundo que havia na teoria de seu mestre mas procurasse se livrar das dificuldades argumentativas advindas de  se concentrar em um único elemento do mundo físico a causa geradora do universo com toda a sua complexidade. Apesar de impalpável e indeterminado, o "ser" de Anaximandro, o  ápeiron, tem em comum com a água o fato de não ter uma forma definida e poder assumir  múltiplas formas.

 Heráclito e Parmênides.

Os dois filósofos tidos como os mais importantes do período pré-socrático também preservam  a teoria da existência de um princípio único que gera e sustenta o universo. No entanto,   adotam perspectivas bem diferentes na definição de tal princípio. De acordo com Heráclito, o universo é determinado por um lógos cuja  essência é o eterno movimento que faz com que os seres nunca permaneçam os mesmos, estejam em constante transformação. Para ele, a realidade encoberta aos olhos de quem não possui a sageza, é como o fluir de um rio pois as águas que passam nunca são as mesmas. Em dois de seus fragmentos mais conhecidos, Heráclito afirma:

"De quem desce ao mesmo rio vêm ao encontro àguas sempre novas". "Descemos e não descemos ao mesmo rio, nós mesmos somos e não somos".

Este eterno devir transcorre de forma harmônica apesar de conter em si a permanente guerra entre os opostos, o encontro contínuo de forças que contrastam umas às outras. A harmonia do devir se realiza, então, graças à perene síntese de contrários que ocorre como um pacificar-se de beligerantes. Heráclito afirma que o elemento capaz de representar este princípio de mudança da realidade é o fogo: matéria em constante mutação, forma-se e desforma-se, age na consumação e, ao ser consumido, também se transforma: cinzas e  fumaça seriam as novas sínteses geradas pelo conflito, o entrechoque das matérias.
Parmênides não se eximiu da busca de um princípio uno capaz de dar sentido ao universo,  mas descartou a mudança e o movimento captados pelos sentidos como chaves para o desvendamento da realidade. Para ele, o mais importante é apreendermos a totalidade do Ser, pois é este quem contém o vigor da geração e organização de tudo o que existe. A imobilidade do Ser defendida por Parmênides não é sinônimo de estaticidade, no sentido de negação completa do movimento e das transformações do mundo físico. O que ele defende é a investigação filosófica voltada para a busca da ordem universal, rica semente que a tudo gera e que, por isso, contém e explica a diversidade do mundo físico. Para ele, a observação  das particularidades dos movimentos pode nos conduzir à ilusão. É importante ressaltar que o "princípio" gerador, o Ser parmenidiano, não é algo que teve um início pois é sempre o agora, não é passado nem futuro porque nunca foi gerado, é ingênito e inalterável. O caminho da verdade consiste, portanto, na compreensão do Ser e de suas leis necessárias que abarcam toda a realidade.
Para se atingir a contemplação do Ser, Parmênides afirma que há apenas uma via absoluta da verdade, a via que tem como princípio a afirmação de que "o Ser é e não pode não ser; o não ser não é e não pode ser de modo algum" . Desta forma, Parmênides afirma o caminho da razão e do lógos que pode ser percorrido pelo filósofo com  esforço racional. Só assim é possível evitar a ilusão das aparências e retirar os véus que encobrem a real. A busca primordial é pela realidade necessária, eternamente presente mas que se encontra habitualmente velada aos olhos da maioria dos mortais.
Há quem perceba nesta única via da verdade em direção ao Ser, a primeira elaboração filosófica do princípio da não-contradição que nega a possibilidade de os contraditórios existirem ao mesmo tempo. Ainda que Parmênides a tenha aplicado apenas no plano da formulação ontológica, ou seja, na explicitação da ordem estrutural necessária do universo, é ela o fundamento aplicado por Aristóteles na formulação de toda a lógica ocidental.

Entre Heráclito e Parmênides, portanto, pode ser ressaltada a mesma convergência teórica encontrada entre os pré-socráticos, pois ambos atestam a existência de um princípio essencial estruturador do universo. O que difere nas duas propostas é a perspectiva de definição de tal princípio: o primeiro afirmando o movimento incessante dos contrários como o modo essencial de ser do lógos; o segundo considerando a eterna permanência do Ser que contém em si todas as possíveis formas de configuração da realidade, como o princípio universal supremo.

Eudaimonia em Aristóteles

No texto "Eudaimonia e Bem Supremo em Aristóteles", Marco Zingano se propõe a dirimir, de uma vez por todas, as dúvidas com relação a estes dois termos considerados fins pela doutrina aristotélica. De acordo com o autor, desde os primeiros comentadores da obra de Aristóteles, há controvérsias quanto ao que de fato o filósofo entende por eudaimonia e bem supremo. Com relação à primeira, há duas interpretações tidas como possíveis ao longo da história: há  estudiosos que conceituam eudaimonia como um fim dominante, quer dizer, um fim único alcançado graças ao somatório de todos os outros fins que levam até ele; e há os que compartilham de uma definição mais flexível, afirmando que Aristóteles define o termo como sendo um fim inclusivo de segunda ordem, um fim que requer outros fins para ser alcançado mas cuja essência consistiria não num mero somatório de fins, mas na harmonia entre os fins primários, aqueles que a compõem e pelos quais se chega à eudaimonia.
          Para defender seu ponto de vista inclusivista a respeito das definições de  eudaimonia e bem supremo, Marco Zingano analisa linguisticamente alguns trechos importantes da obra do filósofo grego que tratam dos termos. Além disso, se empenha em fazer a interpretação dentro do contexto do sistema aristotélico, buscando a definição de um termo não só nas referências diretas a ele ( já que a adoção exclusiva desta atitude pode aumentar as chances de confusão linguística ) mas também nos escritos a respeito de termos correlatos.  No caminho argumentativo para  validar sua posição, Zingano nos revela que, para Aristóteles, existe uma certa hierarquia de fins, sendo os de maior valor aqueles conquistados por meio do intelecto. Como exemplo, é citada a felicidade que só é verdadeira (a felicidade primeira) quando conquistada por meio de deliberação responsável, a deliberação humana que tem consciência, que conhece a razão e os valores dos meios e dos fins escolhidos. A felicidade seria, assim, uma atividade segundo virtude perfeita, quer dizer, a virtude moral acompanhada de virtude intelectual. Existiriam outros fins considerados hierarquicamente inferiores por não serem fruto de deliberação racional, entre eles  estão as virtudes adquiridas apenas pelo hábito que não seriam suficientes para nos levar à felicidade primeira. A deliberação racional também é tida como indispensável para produzir  a eudaimonia. No livro Ethica Nicomachea X , Aristóteles defende a tese de que a atividade segundo a virtude intelectual é que produz a eudaimonia.
          Um outro aspecto da noção de felicidade é tomado para a argumentação  de Zingano a favor da teoria inclusivista, qual seja, o dado de que a felicidade é considerada por Aristóteles um bem em si mesmo, que é perseguida em vista dela mesma, não podendo existir em vista de outra coisa. Sendo assim, não pode haver felicidade maior ou menor conforme o acréscimo ou redução das virtudes que a compõem, já que seria um absurdo lógico imaginar que um fim em si mesmo pode ser maior ou menor que ele mesmo. Assim também é a definição de eudaimonia, uma vez que esta é considerada como supremamente preferível.  O conceito se comporta  de forma correlata ao de felicidade, não podendo ter a mesma titulação que os outros bens: se isso ocorresse, sendo-lhe somado o menor bem possível, a eudaimonia  não seria a mais preferível pois este maior valor seria dado ao resultado da soma.  Zingano segue esta mesma linha de raciocínio na definição de  bem supremo como um bem inclusivo, aquele que inclui bens em si, sem estar ao lado destes em posição de valor: é um fim de segunda ordem. O conceito de forma ajuda a compor a definição: entendendo-se forma como o resultado do conjunto formado por várias partes, o sentido e o fim deste conjunto, o bem supremo seria a forma que informa uma multiplicidade de fins conquistados por meio de virtudes primeiras, as virtudes  morais e intelectuais.

FILOSOFIA, METAFÍSICA E CIÊNCIA + FENOMENOLOGIA.

1) De que formas Metafísica e Ciência se aliam e se contrapõem al longo da história do Mundo Ocidental? Por que o Projeto de Modernidade é pós-metafísico? Qual a diferença entre Metafísica e Ontologia? Por que é menos arriscado falar em Ontologia?
                                                                       


Desde o início da Filosofia, entre os séculos VI e V a.C., o exercício do pensamento racional livre de crenças enraizadas em superstições, nos mitos e no dogmatismo religioso, sempre enfrentou sérias dificuldades para se impor num mundo onde as relações de poder se fundamentavam justamente sobre estas bases tradicionais da cultura. Esta realidade fez com que Filosofia e Ciência, durante 20 séculos, fossem parceiras em um mesmo campo de soberania do espírito onde o intelecto pôde expandir as fronteiras do livre pensar. Entre os chamados filósofos pré-socráticos, por exemplo, a própria concepção de metafísica apoiava-se na observação dos fenômenos físicos, o qual tenta ultrapassar. O metafísico sente-se tão seguro quanto à existência de uma realidade extra-sensível, cujo conhecimento seria possível por meio da razão, que não vê problemas na expansão das ciências, tomando seus resultados como meras expressões das leis universais e necessárias  já previstas pela Filosofia, cabendo à ciência apenas constatá-las. Estabeleceu-se, assim, uma espécie de tutela da metafísica sobre o científico, relação em que tutor e tutelado sentiam-se amparados um pelo outro.
A partir do século XVI, as descobertas científicas começam a impor derrotas estrondosas à metafísica. Os pensamentos astrológicos de Aristóteles e de São Tomás de Aquino, por exemplo, desabam sob as sólidas demonstrações físicas e matemáticas de Galileu e de Newton. Avanços também importantes na química e na biologia tornam ainda mais patentes o quanto o experimento científico com seus resultados práticos independem de uma concepção a priori e totalizante da realidade, concepção esta que passa a ser tida como uma camisa de força a limitar o movimento das pesquisas. No século XVIII, já em meio aos escombros do castelo metafísico, posto abaixo por inúmeras mostras de independênca da Ciência, o esforço filosófico de Kant pode ser visto como uma das últimas tentativas de restabelecer o primado da Filosofia no campo do conhecimento. A doutrina do filósofo prussiano reduzia enormemente as ambições da metafísica ao reconhecer nossa incapacidade de saber como as coisas são em si mesmas, independentemente de nossas próprias características humanas. Ao colocar em questão nossa forma de atingir conhecimentos verdadeiros, Kant restringe a metafísica a uma teoria do conhecimento que busca a realidade posta pela objetividade estabelecida a priori pela razão ou pelo sujeito transcendental.  Para ele, nunca saberemos o que é e como é a realidade separada e independente de nós, apenas conhecemos a realidade tal como ela é captada por nosso principal instrumento de inteligibilidade, qual seja, a razão. A razão, segundo Kant, seria idêntica em todos os seres humanos, independentemente do lugar e da época em que vivemos, é um instrumento que nos é dado a priori e que estrutura as ideias produzidas pelo sujeito.
A Ciência vitoriosa, orgulhosa de suas inovações capazes de modificar a natureza e interferir no cotidiano dos homens, passou a reivindicar o posto supremo na condução do saber. Desenvolveram-se, então, teorias como a dos positivistas que pretendiam impor o rigor do método a todo e qualquer objeto de estudo. Assim,  fatos psicológicos, históricos ou sociais passam por um processo reducionista que os transformam em coisas ou  realidades materiais. Os que fizeram parte desta corrente filosófica, como Renan, Comte e Berthelot, chegam mesmo a acreditar que a Ciência seria a fonte de todos os valores necessários à humanidade. Somente os positivistas contemporâneos compreenderam que suas ideias incorriam no mesmo dogma metafísico, pois consideravam a Ciência um ente absoluto, totalizador da realidade. Essa compreensão deu-se apenas depois das crises econômicas e sociais que começaram no século XIX e chegaram ao século XX sob a forma de duas grandes guerras mundiais.
Uma perspectiva filosófica alternativa ao dogma científico foi elaborada no início so século XX por Edmund Husserl, criador da fenomenologia. Ao atribuir à consciência, instituída de intencionalidade, um papel preponderante na estruturação da realidade, Husserl valorizou a capacidade humana de criar sentidos próprios para tudo o que nos cerca. Seus seguidores, Martin Heidegger e Merleau-Ponty, dedicaram-se a alargar ainda mais a distância entre a Filosofia e a metafísica tradicional, defensora da busca pela verdade de uma realidade que existiria em si mesma, separada do sujeito do conhecimento. A nova ontologia proposta pelos dois filósofos parte do pressuposto de que a realidade deve ser precebida sob a perspectiva de nossa presença no mundo material, natural, ideal e cultural. Para eles, o mundo não pode ser reduzido pelas ciências a um conjunto de coisas e fatos, o mundo não é constituído apenas por uma série de fatos apreendidos racionalmente e cientificamente. O mundo é também o lugar onde vivemos com outros semelhantes a nós, em meio à pluradidade de coisas e fenômenos físicos, sociais e afetivos. Comparada à metafísica, a nova ontologia guarda uma espécie de comedimento em relação às nossas pretensões de conhecer a verdade, ao mesmo tempo em que nos abre perspectivas valorativas de nossa capacidade de criação de sentidos e significados humanos, fundamentais para o conhecimento de nós próprios e para o nosso estar-no-mundo.

2)Explique como e por que o homem só é homem se for livre. Como a fenomenologia existencial compreende a liberdade? Quais seus principais argumentos?
Para afirmar o homem como ser livre, a fenomenologia sustenta ser inerente a nós uma subjetividade que nos eleva acima do simples fato de estarmos no mundo. Existimos não como uma coisa que, às cegas, é submetida a processos e forças que a fazem um mero resultado advindo de uma sequência de fenômenos. Nossa subjetividade é nossa consciência de estarmos no mundo, é o que nos torna capazes de perceber nossa própria existência e a existência das coisas que nos cercam. Assim, podemos nos tornar sujeitos dinâmicos e atuantes na realidade que se nos afigura, como quando se diz: "estar trabalhando", "estar passeando" ou "um ser-que-trabalha", "um ser-que-passeia". O fato de não estarmos apenas submetidos a processos e forças quer dizer que temos uma certa "ausência de determinação", o que exprime  um dos sentidos da palavra liberdade. Se não somos totalmente determinados e temos consciência de nossa consciência, podemos assumir alguma autonomia sobre nossa própria existência, autonomia que se configura como o sentido positivo da palavra liberdade. A liberdade inerente a nós faz com que sejamos um nosso próprio projeto, ou seja, em vista do que é possível, temos a chance de fazer escolhas e de nos alçar para além da situação que nos foi dada como determinante. Ter nascido no Brasil, na Palestina ou na Síria, ser calvo, anão ou portador de alguma doença hereditária, são fatos que não se mudam mas, mesmo diante deles, temos possibilidades de atuar para nos definirmos como sujeitos com inúmeras outras qualidades que nos fazem ser mais que as determinações iniciais. Mesmo a recusa de fazer algo para superar as próprias determinações leva à realização de um projeto humano pois o homem se realiza ainda que como preguiçoso ou alienado. É nesta perspectiva que o filósofo Jean Paul Sartre declarou que “o homem está condenado a ser livre”.   Durante as escolhas entre as possibilidades que se abrem, a liberdade se revela como razão que é a faculdade de fazer aparecer o significado. O significado é o que emerge da obscuridade das coisas e torna objetiva a realidade para o sujeito em sua subjetividade. Os fenomenólogos negam, entretanto, que o  significado seja atribuído pelo sujeito de forma arbitrária. Ele revelaria, sim, a ligação da subjetividade do sujeito com a objetividade do mundo, ou seja, com a teia de outros sujeitos, coisas e leis necessárias que nos envolvem. Daí porque o ser-livre-racional não toma a liberdade como uma capacidade de fazer o que bem entende, sem importar-se com as consequências. O que se tem em vista é o que faz ser possível qualquer escolha entre isto ou aquilo, quer dizer, a possibilidade  da manifestação do juízo objetivo do homem como sujeito.

MITOLOGIA E FILOSOFIA.




O pensamento filosófico distanciou-se do pensamento mítico na medida em que buscou na razão humana respostas para indagações que o homem se faz ao longo dos séculos. Em vez de creditar aos deuses  a criação e a manutenção da ordem universal, como faziam os mitos, a filosofia se lança à tarefa de decifrar com explicações lógicas as causas naturais de todas coisas e seus fenômenos. Tal mudança de atitude mental se deu mediante circunstâncias históricas vividas pelos gregos a partir dos século VI a.C. Foi um período de grandes transformações econômicas e culturais em que se verificou a decadência da sociedade patriarcal e a ascenção de novas classes econômicas ao poder, em particular a classe dos comerciantes.

As inúmeras viagens marítimas comerciais acabaram por "desencantar" o mundo ao redor da Grécia que, de acordo com os mitos, era povoado por monstros e deuses dignos de medo ou respeito. Nessas regiões, consideradas pelos poemas homéricos e por antigas lendas moradas de seres superiores aos mortais, os gregos não encontraram mais que homens comuns, tanto quanto eles voltados às preocupações do cotidiano. Os viajantes também notaram que as crenças e os mitos variam de uma cultura para outra o que faz com  que, por vezes, o que é sagrado para uns, para outros sequer seja digno de nota. As experiências de viagens portanto, tornaram possível a relativização e o consequente enfraquecimento das crenças religiosas e deram impulso às reflexões que se baseiam na capacidade do homem de interpretar por si mesmo o mundo que o rodeia. Tendo a razão como instrumento, a Filosofia passa a repelir  partes constituintes da narrativa mítica, como certas contradições e irracionalidades   usadas para justificar o caráter misterioso dos deusas e suas ações.

No entanto, vários autores, como o francês Georges Gusdorf, destacam o importante papel desempenhado pelo Mito na estruturação do pensamento humano e sua ressonância na Filosofia até os dias de hoje. Para Gusdorf, o Mito mantém-se "como o próprio lar das formas humanas, o princípio último das nossas afirmações" sendo, portanto, uma espécie de fundo de sentido para a vivência humana, o plano da consciência onde encontramos valores que nos fazem humanos diante do mundo. Para o francês, valores formados pela consciência mítica como Liberdade, Justiça, Fraternidade, Igualdade, Progresso, Civilização, entre outros, são fontes de energia a impulsionar as diversas correntes filosóficas que, ao abarcá-las, conseguem sensibilizar e mobilizar os homens à permanente reflexão. O autor nos lembra da herança mítica que mantemos ainda hoje nas religiões e nas culturas e destaca a importância desses dois campos como marcas profundas na identidade dos sistemas filosóficos, visto que tais sistemas são feitos por homens imersos em sua própria história,  tradição, tempo e cultura.

Quanto aos temas que revelam a inquietude e a angústia humanas, quais sejam: a origem do cosmos, a morte ou finitude das coisas, o mal, a eternidade e vários outros, pode-se dizer que, antes de encontrarem campo na Filosofia,  faziam parte das principais reflexões do pensamento mítico. Os mitos já se preocupavam com tais questões que mais tarde se tornariam parte das discussões da metafísica, já pretendiam explicar o que faz o mundo ser como é: atribuiam aos deuses a criação e a manutenção da ordem e das leis do universo cujos ciclos tornam possível a vida e a vida humanamente vivida. A Filosofia desenvolvida pelos pré-socráticos foi o passo decisivo da fuga do caminho dos deuses em direção à rota  da explicação racional das forças reguladoras do cosmos. Os primeiros filósofos buscaram o princípio universal que, apesar de estar presente em todas as coisas, faz-se oculto aos sentidos, o princípio que permanece para além das aparências concretas, mas se oferece a todo instante aos que são capazes de desvendá-lo com o uso da razão. Entretanto, como dar conta da explicação de um princípio único se as coisas se nos apresentam de modo tão múltiplo, com uma diversidade aparentemente infinita? Como acreditar em algo capaz de manter-se uno, indivisível e imutável em essência diante de uma realidade em constante transformação, feita de coisas efêmeras, que se corrompem com a ação do tempo e das forças naturais? São questões que a metafísica tem em comum com a mitologia mas que em uma e em outra forma de consciência são tratadas de perspectivas bem diferentes: a primeira, assumindo o ponto de vista da razão, a segunda baseando-se na crença religiosa. Fazendo-se essa ressalva, pode-se afirmar sim, que a mitologia constituiu-se em uma primeira metafísica.


ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA - HENRIQUE C. DE LIMA VAZ

         
Henrique Lima Vaz


A concepção do homem na cultura grega arcaica.

Nos séculos VIII e VII a.C., a cultura grega arcaica faz surgir a concepção de homem  que irá definir ideais e valores que prevalecem até hoje na civilização ocidental. A imagem traçada pelos filósofos estabelece duas características fundamentais: o homem como animal capaz de falar e elaborar  discursos e o homem como animal político. São dois traços com estreita ligação, uma vez que  é por meio do discurso que o homem entra em relação com seus semelhantes e institui a comunidade política. No entanto, a correlação entre o discurso e o bem comum não é algo harmonioso por natureza, o que vem a se tornar o problema fundamental da concepção clássica do homem. A tentativa de solução é a busca de uma harmonia entre a contemplação (theoria) e o agir moral e político (praxis),  atividades pelas quais se manifestam  o logos e a política.

As linhas dominantes na formação da imagem do homem clássico são três: teológica ou religiosa, cosmológica e antropológica.  A primeira dessas linhas põe em evidência a diferença entre o mundo dos deuses, seres imortais e bem aventurados,  e o mundo dos mortais, que são efêmeros, infelizes e com ímpetos de orgulho (hybris) na tentativa de se igualarem aos deuses.  Para uma tal atitude desmedida, a resposta dos deuses é o decreto implacável do destino (moira) que determina o fim trágico na vida dos mortais. Trata-se da situação apresentada pelo mito de Prometeu e que desperta a chamada sabedoria gnômica ou sapiencial cuja pregação tem como linha mestra a moderação (sophorosyne) traduzida em preceitos como os de   "nada em excesso" e "conhece-te a ti mesmo".

A linha cosmológica da imagem do homem grego arcaico realça duas atitudes comuns às várias culturas antigas: a admiração e a contemplação da ordem do mundo. Entre os gregos, de acordo com Platão e Aristóteles, essas atitudes deram origem à Filosofia e ao estilo de vida teorética que os gregos assumem como sendo um de seus traços mais marcantes. Uma outra característica é a descoberta da correspondência entre  a natureza (physis) e a ordem da cidade (polis) que deve ser instituída por leis justas. Essa correspondência será um dos motivos para a prática da ciência do agir humano (Ética), que terá uma profunda significação para a formação da ideia do homem formada do mundo ocidental. A linha cosmológica tem um ponto em comum muito importante com a linha teológica, uma vez que ambas  contemplam o conceito de necessidade (anánke), inerente à ordem do mundo (kosmos),  à qual deverão se submeter homens e deuses. Nessa perspectiva, um dos desafios permanentes da Filosofia será conciliar a necessidade cósmica e a liberdade humana.
          Na linha antropológica, a condição humana traçada pelos gregos articula as experiências fundamentais dos homens com a relação dos homens com os deuses. Dentro de tal condição, a expressão mais conhecida é a oposição entre o apolíneo e o dionisíaco, importantes dimensões da alma grega. O apolíneo corresponde à presença do logos, lei cósmica que ordena todas coisas e capaz de trazer clareza ao pensamento e às ações. Já o dionisíaco representa o lado obscuro da alma, onde prevalecem as forças da paixão e do desejo (eros). No Banquete, Platão nos revela que uma das missões da Filosofia  é a de encontrar o equilíbrio entre esses dois pólos. Outro tópico que a filosofia arcaica transmite à Antropologia Filosófica é o tema da alma que se desdobra em duas vertentes principais: a alma como sopro, dublê do corpo que, após a morte deste,  passa a viver no mundo dos mortos, o Hades; e a representação herdada do orfismo que tem a alma como uma entidade que se separa do corpo e nele reencarna em variadas e sucessivas existências. A ideia de excelência (areté) é outra marca muito importante na visão arcaica do homem grego. Ela diz respeito à vida social e política e fixa-se na imagem do heroi contemplado com as virtudes para a guerra e para a missão civilizatória como fundador da cidade. Ao longo dos séculos, a ideia de areté  passa a privilegiar a figura do sábio, um movimento que está relacionado ao declínio da aristocracia guerreira e a partir do qual a estrutura social da cidade se consolida por meio da participação democrática dos cidadãos. Às virtudes guerreira e política soma-se a virtude do trabalho nos campos, o esforço laborioso valorizado como um dos sustentáculos da pólis grega.

De acordo com o filósofo Henrique de Lima Vaz, o tema do destino (moira) é  comum a todas as linhas de visão do homem na cultura grega arcaica. Dentro deste tema, elaboram-se como pensamentos o "pessimismo" e o "moralismo".  O primeiro apresenta o homem como incapaz de vencer a inexorabilidade do destino, contra o qual mobiliza inutilmente suas energias (hybris), o que faz com que se revele toda a sua fragilidade e desamparo diante da moira. Já o moralismo torna predominante a concepção do homem como um ser responsável por seus atos e tenta definir o grau de ação sobre a realidade que o homem é capaz de produzir. Pode-se, a partir disso, atribuir méritos ou deméritos às atitudes individuais. As tragédias gregas retratam muito bem as duas concepções de mundo. Ésquilo é considerada um dos maiores exemplos da visão pessimista; Eurípedes, por sua vez, enquadra-se dentro da visão moralista. Em Sófocles estão presentes ambas as concepções, sendo uma das obras mais ilustrativas da fase de transição entre os dois pensamentos.

Questões e conclusões importantes.

As questões que o homem levanta a respeito de si mesmo podem ser consideradas tão antigas quanto a própria existência humana. A partir do século V a. C. os sofistas trouxeram o tema para a Filosofia que, a partir de então, jamais o abandonou. A Filosofia tornou-se um modo de refletir a respeito de nossa capacidade de obter conhecimento e de nossa forma de agir eticamente em relação aos outros e em relação ao mundo que nos cerca. Para Henrique C. de Lima Vaz, cabe  à Antropologia Filosófica as tarefas de formular uma definição de homem capaz de abranger tanto os aspectos abordados ao longo dos séculos pela Filosofia quanto as descobertas mais recentes das ciências do homem; fundamentar o discurso da unidade dessa pluralidade, ou seja, fazer a justificação crítica da ideia  de homem; e, por último, empreender a construção de um sistema filosófico que ponha em questão a pergunta essencial:  "quem é o homem?".

O que justifica esta direção dada por Lima Vaz é, principalmente, o predomínio de uma  visão multifacetada de homem que começou a surgir no século XVIII devido ao fato de o homem ter se tornado objeto de estudo de diversas ciências que começaram a se desenvolver. Diante de abordagens científicas que, muitas vezes, se mostram inconciliáveis entre si, nada parece mais desafiador que a busca de uma unidade humana que parece perdida.  Na perspectiva histórica, a definição de uma imagem do homem também se torna problemática, uma vez que se revela uma justaposição das virtudes humanas clássica, cristã e moderna. As soluções para este dilema se desdobram numa abordagem naturalista, que toma a natureza material como horizonte de definição do humano e na abordagem culturalista, que privilegia a cultura como fonte de conhecimento do homem, contrastando as manifestações humanas e as da natureza. O predomínio de um desses dois pólos na elaboração de uma visão unitária de homem leva aos reducionismos.

A fenomenologia, que destaca a consciência como a instância suprema do humano, está entre os métodos contemporâneos que buscam a síntese da imagem do homem.  Para Edmund Husserl, a categoria básica de tal método é a intencionalidade que estrutura a consciência. O aprofundamento das reflexões de Husserl por seus sucessores desembocou no Existencialismo que transpôs para um segundo plano a necessidade de definição de uma essência humana. Para os existêncialistas, a essência  do que somos só existe em função da existência, ou seja, é posterior a esta. Tal perspectiva considerada pós-metafísica, alarga os horizontes da responsabilidade que temos pela condução de nossas vidas uma vez que, ao invés de confiarmos em uma essência que nos é garantida a priori, por natureza,  constatamos o real valor de nossa capacidade de fazer escolhas para realizarmos nosso projeto de ser. Para os fenomenólogos, o homem pode ser definido como um ser "para-si":  é capaz de inteirar-se a respeito de si e das coisas e, ao inteirar-se, relacionar-se com o mundo, agir, afetar e ser afetado, conhecer e dar-se a conhecer, ter sentimentos de angústia, alegria ou desespero. Já as coisas não se dão conta de sua existência, são meros resultados de processos e forças atuantes no universo, são seres "em si".
Introdução do livro "Antropologia Filosófica (Vol. I) ", de Henfique Cláudio de Lima Vaz (resumo).           A interrogação  que o homem faz a respeito de sua própria existência vem ultrapassando eras, manifestando-se nas mais diversas formas de expressão. Mitologia, filosofia, literatura, ciência, ethos e política têm contribuído para a formação de uma espécie de imagem caleidóscópica que construímos de nós mesmos.  Na Filosofia, as discussões sobre o homem atingiram um maior grau de abrangência e profundidade durante o século XVIII, com  Immanuel Kant, auge dos debates que se tornaram uma constante a partir do século V a. C., graças aos sofistas, que inauguraram a temática entre os filósofos . As questões levantadas por Kant giravam em torno do agir, do saber, do estar do homem no  mundo e de sua vivência místico-religiosa, fazendo avançar a teoria do conhecimento (o que posso saber?), a teoria do agir ético ( o que devo fazer?), a filosofia da religião (o que me é permitido esperar) e a Antropologia Filosófica (o que é o homem?).
          No final do século XVIII, a Antropologia Filosófica viu-se como que em uma encruzilhada devido às diversas abordagens das ciências que tomaram o homem como objeto de estudo. Os novos saberes gerados pela biologia, pela história e pelo estudo das culturas provocaram uma crise metodológica,  pois cada uma das ciências passou a apresentar a temática de modo próprio, multifacetando as definições do homem com abordagens muitas vezes inconcíliáveis entre si. Outra crise ocorre na vertente histórica devido à justaposição no tempo das imagens do homem clássico, cristão e moderno. Os dilemas que se impuseram à Filosofia, fizeram com que esta buscasse soluções que se dividiram entre uma perspectiva naturalista, cujo horizonte de definição do humano se restringia quase que apenas à natureza material; e a perspectiva culturalista, que põe em contraste o fenômeno humano e as manifestações da natureza, privilegiando a cultura como fonte de conhecimento do homem.
          Para o filósofo brasileiro, Henfique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002), diante desse quadro, cabem à Antropologia Filosófica três tarefas fundamentais, quais sejam: formular uma definição de homem capaz de abranger tanto os aspectos abordados ao longo dos séculos pela Filosofia quanto as descobertas mais recentes das pelas ciências do homem; fundamentar o discurso da unidade dessa pluralidade, ou seja, fazer a justificação crítica da ideia  de homem; e, por último, empreender a construção de um sistema filosófico que ponha em questão a pergunta essencial:  "quem é o homem?". Lima Vaz nos apresenta as dificuldades para o desempenho de tais tarefas. A primeira delas é a falta de delimitação precisa das áreas de cada ciência, o que exige uma abordagem interdisciplinar com o objetivo de detectar e conciliar possíveis divergências. O filósofo chama a atenção para a tendência da aplicação de procedimentos empírico-formais - como os utilizados pela Biologia e pela Antropologia Física - no campo das ciências cujo objeto é hermenêutico, como as ciências da linguagem, as ciências econômicas e as ciências sociais. Tais procedimentos podem tornar o estudo duvidoso, uma vez que, nas ciências hermenêuticas, um fato nunca pode ser considerado neutro pois traz em si a sua própria interpretação, diferentemente do que ocorre com fatos biológicos, por exemplo, essencialmente determinados pela natureza, independentes do pensamento humano.
          Uma análise dos conhecimentos que o homem acumulou sobre si mesmo ao longo dos anos torna possível dividi-los em três pólos, conforme o aspecto que  acentuam: a) o pólo das formas simbólicas; b) o pólo do sujeito; c) o pólo da natureza. A maior influência de um desses pólos sobre a construção da visão do homem em uma unidade determina abordagens reducionistas na Antropologia Filosófica. Assim, a predominância do pólo das formas simbólicas, cuja maior preocupação são os problemas da cultura, dá origem ao culturalismo; o destaque acentuado ao pólo do sujeito, que tem como horizonte as ciências do indivíduo e do seu agir individual, social de histórico, sustenta o idealismo; a ênfase no pólo da natureza,  que trata das ciências naturais do homem, dá origem ao naturalismo. Os métodos científicos acabaram por sofrer influência desses reducionismos, o que tornou possível a elaboração de filosofias do homem derivadas de teorias científicas, como a teoria da evolução. Há também os  métodos que enfatizaram  o pólo do sujeito, tomando este como ser histórico (método dialético) ou como ser de intencionalidade que deve ser desvendado em suas estruturas e situações fundamentais (fenomenologia); os métodos que buscam nos símbolos criados pelo homem a explicação para a natureza humana são os de tipo culturalista.       
         Uma reflexão sobre o texto.        
        As páginas introdutórias do livro "Antropologia Filosófica (Volume I)", de Henrique Cláudio de Lima Vaz, nos revelam a complexidade da tarefa de se estabelecer uma visão unitária do homem em uma era de estonteante evolução científica. Os conhecimentos que já obtivemos a respeito de nós mesmos são tão diversificados que, por vezes, podem parecer inconciliáveis uns com os outros. Mas se, por um lado, não podemos abrir mão da ciência com métodos objetivos e racionais para decalcar aspectos próprios da realidade humana, por outro, é necessário o desenvolvimento de uma compreensão filosófica que considere o todo do homem algo mais que a soma dos conhecimentos sobre ele. Caso contrário, corremos o sério risco de obter uma imagem apenas parcial e aparente, uma colagem de retalhos que se encaixam forçadamente sem nos revelar a essência do ser humano, imagem que seria comparável à que já nos foi mostrada de forma metafórica pela literatura e pelo cinema com o personagem Frankenstein. Compete à Antropologia Filosófica a busca de uma visão holística do homem, lançando-se num esforço conciliatório que correlacione as descobertas dos 3 pólos de compreensão do humano. Assim, nos manteria prevenidos contra os chamados reducionismos que têm explicações simplificadoras por privilegiarem um dos três pólos.
          Chama a atenção no texto de Lima Vaz a constatação feita por ele da tendência de se utilizar métodos empírico-formais em áreas de conteúdo hermenêutico. Ora, um posicionamento como este pressupõe uma dinâmica determinista, mecânica, em áreas plasmadas pelo  humano que, por isso, nunca podem ser consideradas neutras, apartadas de significados relativos às culturas ou à história. O risco que se corre é o de dar justificação científica a teorias que já nascem embebidas em visões parciais, que consideram como naturais e universalmente humanos características ou modos de estar no mundo próprios apenas de alguns grupos. Os equívocos que têm sido cometidos ao longo dos últimos séculos e que tiveram como base uma pretensa neutralidade da ciência não são poucos. Basta citar o caso da ciência que ficou conhecida como Frenolofia, que se julgava capaz de determinar o caráter, a personalidade e o grau de criminalidade pela forma da cabeça. O método desta ciência foi desenvolvido no século XIX pelo médico alemão Franz Gall e foi usado para justificar ideologicamente o imperialismo europeu que se expandiu na África e pode ser considerado um primeiro germe da teoria nazista.
          A disseminação de uma visão ampla do que é o homem pode nos fazer vislumbrar valores que estão ocultos ou atrofiados dentro de nós e nos desviar de ilusões construídas a nosso respeito com objetivos meramente econômicos e de poder. Pode criar em todos uma exigência consciente de democratização dos  bens que nos ajudam na realização como seres humanos, nos aproximam da plenitude existencial, bens como a cultura, a natureza, a moradia adequada hoje restritos a poucos.  Nesta época de enorme fluxo de informações, com tecnologias capazes de integrar o planeta, a Antropologia Filosófica deve contribuir na busca da essência comum entre os diversos povos e culturas. Uma essência que, quanto mais nos for revelada, mais espaço pode deixar aberto para o relacionamento com o outro que, sendo diferente apesar de semelhante, me faz refletir e conhecer mais sobre mim mesmo, condição de um verdadeiro continuum civilizatório humano. É no reconhecimento mútuo entre os povos que podem surgir bases para regras justas de convivência cada vez mais necessárias na medida em que as tecnologias nos aproximam e nos fazem dar conta de que, não importa nossa cultura ou posição no mapa, dividimos com os mais "diversos semelhantes" a mesma casa que é o planeta terra.