domingo, 16 de dezembro de 2012

A ORIGEM DA FILOSOFIA;PHYSIS;HERÁCLITO E PARMÊNIDES.





Heráclito, de costas para ...
... Parmênides, na famosa pintura de Rafael.















O surgimento da Filosofia está diretamente relacionado às profundas transformações econômicas, políticas e sociais ocorridas no  seio da cultura grega entre os séculos VI e V a. C. Este período em que se intensificaram as navegações e o comércio com os povos do oriente, teve como consequência o florescimento das cidades e a derrocada da antiga ordem que consistia em um sistema de poder altamente centralizado, cujo monarca detinha as autoridades política, militar e religiosa.
O fortalecimento de classes até então excluídas do processo de liderança do estado, notadamente a dos comerciantes, abriu caminho para uma nova ordem que, ao legitimar-se, incorporou ao cotidiano novos valores sociais, tais como o da crença na capacidade de todos os homens de desenvolver múltiplos conhecimentos e habilidades. Com isso, as virtudes necessárias para exercer qualquer tipo de comando, seja ele político, militar ou religioso, passaram a ser consideradas não mais como dádivas dos deuses a alguns escolhidos, mas sim atributos que podem ser adquiridos com esforço na busca pelo aprendizado.
Uma nova mentalidade que, evidentemente, não se instaurou de roldão como onda de tsunami que em minutos a tudo abarca, mas antes como a mina d´água que, a princípio, poucos humanos percebem tratar-se da origem de um grande rio. Estes poucos, na Grécia Antiga, foram os primeiros filósofos. Ainda em meio à cultura dos mitos, que interpretava o universo como  espaço de criação e constante manifestação dos deuses, tiveram  eles a ousadia de tomar as rédeas do pensamento ao buscar com o uso da própria razão humana respostas a uma questão que sempre intrigou a humanidade: como surgiu o universo?
Séculos mais tarde, ao ordenar e sistematizar o pensamento filosófico desenvolvido até sua época, Aristóteles chamou estes primeiros filósofos de Pré-socráticos. Tal denominação aponta para a mudança de foco dada à especulação filosófica a partir do filósofo Sócrates, em Atenas. De fato, como demonstrou Aristóteles, antes de Sócrates os filósofos tiveram em comum a preocupação de desvendar as causas do surgimento do universo e de tudo o que nele existe: astros, mares, continentes, florestas, seres humanos e animais. Para eles, mesmo o psíquico e a alma pertencem ao plano físico, o que nos leva a concluir que os temas essencialmente humanos também interessavam aos Pré-socráticos. Foi por atestarem a preponderância do mundo empírico, que também foram chamados de físicos.  

 A Physis.

A palavra physis nos remete a um conceito comum a todos os filósofos pré-socráticos. Ela significa o que está subjacente ao universo como causa geradora deste e da diversidade de coisas que nele encontramos. Physis também pressupõe uma ordem ou lei que determina a renovação e o desenvolvimento do que foi gerado. Ao darem prioridade à investigação da physis, os pré-socráticos têm a intenção de encontrar explicações que possam dar conta da realidade como um todo, buscam um princípio único que seria a causa de todas as coisas.
Cada um dos pré-socráticos procurou apontar ou aprimorar a definição deste princípio único que determina e dá sentido ao universo. Para Thales, o primeiro a buscar na razão humana explicações até então confiadas aos deuses, este princípio era a água. Segundo Aristóteles, a conclusão a que chegou o filósofo de Mileto derivou do raciocínio de que é úmido o alimento de todas as coisas e até mesmo o quente se gera e vive no úmido, portanto, nada mais correto e justo do que atribuir ao úmido - ou à água - a origem de tudo.
Anaximandro mantém a perspectiva de Thales ao imaginar um princípio único para as coisas, mas não determina um elemento concreto, do mundo empírico, como fonte geradora primária. Prefere chamar tal princípio de ápeiron , que significa "o sem limite", "o sem determinação". É como se Anaximandro apreendesse o significado de fundo que havia na teoria de seu mestre mas procurasse se livrar das dificuldades argumentativas advindas de  se concentrar em um único elemento do mundo físico a causa geradora do universo com toda a sua complexidade. Apesar de impalpável e indeterminado, o "ser" de Anaximandro, o  ápeiron, tem em comum com a água o fato de não ter uma forma definida e poder assumir  múltiplas formas.

 Heráclito e Parmênides.

Os dois filósofos tidos como os mais importantes do período pré-socrático também preservam  a teoria da existência de um princípio único que gera e sustenta o universo. No entanto,   adotam perspectivas bem diferentes na definição de tal princípio. De acordo com Heráclito, o universo é determinado por um lógos cuja  essência é o eterno movimento que faz com que os seres nunca permaneçam os mesmos, estejam em constante transformação. Para ele, a realidade encoberta aos olhos de quem não possui a sageza, é como o fluir de um rio pois as águas que passam nunca são as mesmas. Em dois de seus fragmentos mais conhecidos, Heráclito afirma:

"De quem desce ao mesmo rio vêm ao encontro àguas sempre novas". "Descemos e não descemos ao mesmo rio, nós mesmos somos e não somos".

Este eterno devir transcorre de forma harmônica apesar de conter em si a permanente guerra entre os opostos, o encontro contínuo de forças que contrastam umas às outras. A harmonia do devir se realiza, então, graças à perene síntese de contrários que ocorre como um pacificar-se de beligerantes. Heráclito afirma que o elemento capaz de representar este princípio de mudança da realidade é o fogo: matéria em constante mutação, forma-se e desforma-se, age na consumação e, ao ser consumido, também se transforma: cinzas e  fumaça seriam as novas sínteses geradas pelo conflito, o entrechoque das matérias.
Parmênides não se eximiu da busca de um princípio uno capaz de dar sentido ao universo,  mas descartou a mudança e o movimento captados pelos sentidos como chaves para o desvendamento da realidade. Para ele, o mais importante é apreendermos a totalidade do Ser, pois é este quem contém o vigor da geração e organização de tudo o que existe. A imobilidade do Ser defendida por Parmênides não é sinônimo de estaticidade, no sentido de negação completa do movimento e das transformações do mundo físico. O que ele defende é a investigação filosófica voltada para a busca da ordem universal, rica semente que a tudo gera e que, por isso, contém e explica a diversidade do mundo físico. Para ele, a observação  das particularidades dos movimentos pode nos conduzir à ilusão. É importante ressaltar que o "princípio" gerador, o Ser parmenidiano, não é algo que teve um início pois é sempre o agora, não é passado nem futuro porque nunca foi gerado, é ingênito e inalterável. O caminho da verdade consiste, portanto, na compreensão do Ser e de suas leis necessárias que abarcam toda a realidade.
Para se atingir a contemplação do Ser, Parmênides afirma que há apenas uma via absoluta da verdade, a via que tem como princípio a afirmação de que "o Ser é e não pode não ser; o não ser não é e não pode ser de modo algum" . Desta forma, Parmênides afirma o caminho da razão e do lógos que pode ser percorrido pelo filósofo com  esforço racional. Só assim é possível evitar a ilusão das aparências e retirar os véus que encobrem a real. A busca primordial é pela realidade necessária, eternamente presente mas que se encontra habitualmente velada aos olhos da maioria dos mortais.
Há quem perceba nesta única via da verdade em direção ao Ser, a primeira elaboração filosófica do princípio da não-contradição que nega a possibilidade de os contraditórios existirem ao mesmo tempo. Ainda que Parmênides a tenha aplicado apenas no plano da formulação ontológica, ou seja, na explicitação da ordem estrutural necessária do universo, é ela o fundamento aplicado por Aristóteles na formulação de toda a lógica ocidental.

Entre Heráclito e Parmênides, portanto, pode ser ressaltada a mesma convergência teórica encontrada entre os pré-socráticos, pois ambos atestam a existência de um princípio essencial estruturador do universo. O que difere nas duas propostas é a perspectiva de definição de tal princípio: o primeiro afirmando o movimento incessante dos contrários como o modo essencial de ser do lógos; o segundo considerando a eterna permanência do Ser que contém em si todas as possíveis formas de configuração da realidade, como o princípio universal supremo.

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