domingo, 16 de dezembro de 2012

ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA - HENRIQUE C. DE LIMA VAZ

         
Henrique Lima Vaz


A concepção do homem na cultura grega arcaica.

Nos séculos VIII e VII a.C., a cultura grega arcaica faz surgir a concepção de homem  que irá definir ideais e valores que prevalecem até hoje na civilização ocidental. A imagem traçada pelos filósofos estabelece duas características fundamentais: o homem como animal capaz de falar e elaborar  discursos e o homem como animal político. São dois traços com estreita ligação, uma vez que  é por meio do discurso que o homem entra em relação com seus semelhantes e institui a comunidade política. No entanto, a correlação entre o discurso e o bem comum não é algo harmonioso por natureza, o que vem a se tornar o problema fundamental da concepção clássica do homem. A tentativa de solução é a busca de uma harmonia entre a contemplação (theoria) e o agir moral e político (praxis),  atividades pelas quais se manifestam  o logos e a política.

As linhas dominantes na formação da imagem do homem clássico são três: teológica ou religiosa, cosmológica e antropológica.  A primeira dessas linhas põe em evidência a diferença entre o mundo dos deuses, seres imortais e bem aventurados,  e o mundo dos mortais, que são efêmeros, infelizes e com ímpetos de orgulho (hybris) na tentativa de se igualarem aos deuses.  Para uma tal atitude desmedida, a resposta dos deuses é o decreto implacável do destino (moira) que determina o fim trágico na vida dos mortais. Trata-se da situação apresentada pelo mito de Prometeu e que desperta a chamada sabedoria gnômica ou sapiencial cuja pregação tem como linha mestra a moderação (sophorosyne) traduzida em preceitos como os de   "nada em excesso" e "conhece-te a ti mesmo".

A linha cosmológica da imagem do homem grego arcaico realça duas atitudes comuns às várias culturas antigas: a admiração e a contemplação da ordem do mundo. Entre os gregos, de acordo com Platão e Aristóteles, essas atitudes deram origem à Filosofia e ao estilo de vida teorética que os gregos assumem como sendo um de seus traços mais marcantes. Uma outra característica é a descoberta da correspondência entre  a natureza (physis) e a ordem da cidade (polis) que deve ser instituída por leis justas. Essa correspondência será um dos motivos para a prática da ciência do agir humano (Ética), que terá uma profunda significação para a formação da ideia do homem formada do mundo ocidental. A linha cosmológica tem um ponto em comum muito importante com a linha teológica, uma vez que ambas  contemplam o conceito de necessidade (anánke), inerente à ordem do mundo (kosmos),  à qual deverão se submeter homens e deuses. Nessa perspectiva, um dos desafios permanentes da Filosofia será conciliar a necessidade cósmica e a liberdade humana.
          Na linha antropológica, a condição humana traçada pelos gregos articula as experiências fundamentais dos homens com a relação dos homens com os deuses. Dentro de tal condição, a expressão mais conhecida é a oposição entre o apolíneo e o dionisíaco, importantes dimensões da alma grega. O apolíneo corresponde à presença do logos, lei cósmica que ordena todas coisas e capaz de trazer clareza ao pensamento e às ações. Já o dionisíaco representa o lado obscuro da alma, onde prevalecem as forças da paixão e do desejo (eros). No Banquete, Platão nos revela que uma das missões da Filosofia  é a de encontrar o equilíbrio entre esses dois pólos. Outro tópico que a filosofia arcaica transmite à Antropologia Filosófica é o tema da alma que se desdobra em duas vertentes principais: a alma como sopro, dublê do corpo que, após a morte deste,  passa a viver no mundo dos mortos, o Hades; e a representação herdada do orfismo que tem a alma como uma entidade que se separa do corpo e nele reencarna em variadas e sucessivas existências. A ideia de excelência (areté) é outra marca muito importante na visão arcaica do homem grego. Ela diz respeito à vida social e política e fixa-se na imagem do heroi contemplado com as virtudes para a guerra e para a missão civilizatória como fundador da cidade. Ao longo dos séculos, a ideia de areté  passa a privilegiar a figura do sábio, um movimento que está relacionado ao declínio da aristocracia guerreira e a partir do qual a estrutura social da cidade se consolida por meio da participação democrática dos cidadãos. Às virtudes guerreira e política soma-se a virtude do trabalho nos campos, o esforço laborioso valorizado como um dos sustentáculos da pólis grega.

De acordo com o filósofo Henrique de Lima Vaz, o tema do destino (moira) é  comum a todas as linhas de visão do homem na cultura grega arcaica. Dentro deste tema, elaboram-se como pensamentos o "pessimismo" e o "moralismo".  O primeiro apresenta o homem como incapaz de vencer a inexorabilidade do destino, contra o qual mobiliza inutilmente suas energias (hybris), o que faz com que se revele toda a sua fragilidade e desamparo diante da moira. Já o moralismo torna predominante a concepção do homem como um ser responsável por seus atos e tenta definir o grau de ação sobre a realidade que o homem é capaz de produzir. Pode-se, a partir disso, atribuir méritos ou deméritos às atitudes individuais. As tragédias gregas retratam muito bem as duas concepções de mundo. Ésquilo é considerada um dos maiores exemplos da visão pessimista; Eurípedes, por sua vez, enquadra-se dentro da visão moralista. Em Sófocles estão presentes ambas as concepções, sendo uma das obras mais ilustrativas da fase de transição entre os dois pensamentos.

Questões e conclusões importantes.

As questões que o homem levanta a respeito de si mesmo podem ser consideradas tão antigas quanto a própria existência humana. A partir do século V a. C. os sofistas trouxeram o tema para a Filosofia que, a partir de então, jamais o abandonou. A Filosofia tornou-se um modo de refletir a respeito de nossa capacidade de obter conhecimento e de nossa forma de agir eticamente em relação aos outros e em relação ao mundo que nos cerca. Para Henrique C. de Lima Vaz, cabe  à Antropologia Filosófica as tarefas de formular uma definição de homem capaz de abranger tanto os aspectos abordados ao longo dos séculos pela Filosofia quanto as descobertas mais recentes das ciências do homem; fundamentar o discurso da unidade dessa pluralidade, ou seja, fazer a justificação crítica da ideia  de homem; e, por último, empreender a construção de um sistema filosófico que ponha em questão a pergunta essencial:  "quem é o homem?".

O que justifica esta direção dada por Lima Vaz é, principalmente, o predomínio de uma  visão multifacetada de homem que começou a surgir no século XVIII devido ao fato de o homem ter se tornado objeto de estudo de diversas ciências que começaram a se desenvolver. Diante de abordagens científicas que, muitas vezes, se mostram inconciliáveis entre si, nada parece mais desafiador que a busca de uma unidade humana que parece perdida.  Na perspectiva histórica, a definição de uma imagem do homem também se torna problemática, uma vez que se revela uma justaposição das virtudes humanas clássica, cristã e moderna. As soluções para este dilema se desdobram numa abordagem naturalista, que toma a natureza material como horizonte de definição do humano e na abordagem culturalista, que privilegia a cultura como fonte de conhecimento do homem, contrastando as manifestações humanas e as da natureza. O predomínio de um desses dois pólos na elaboração de uma visão unitária de homem leva aos reducionismos.

A fenomenologia, que destaca a consciência como a instância suprema do humano, está entre os métodos contemporâneos que buscam a síntese da imagem do homem.  Para Edmund Husserl, a categoria básica de tal método é a intencionalidade que estrutura a consciência. O aprofundamento das reflexões de Husserl por seus sucessores desembocou no Existencialismo que transpôs para um segundo plano a necessidade de definição de uma essência humana. Para os existêncialistas, a essência  do que somos só existe em função da existência, ou seja, é posterior a esta. Tal perspectiva considerada pós-metafísica, alarga os horizontes da responsabilidade que temos pela condução de nossas vidas uma vez que, ao invés de confiarmos em uma essência que nos é garantida a priori, por natureza,  constatamos o real valor de nossa capacidade de fazer escolhas para realizarmos nosso projeto de ser. Para os fenomenólogos, o homem pode ser definido como um ser "para-si":  é capaz de inteirar-se a respeito de si e das coisas e, ao inteirar-se, relacionar-se com o mundo, agir, afetar e ser afetado, conhecer e dar-se a conhecer, ter sentimentos de angústia, alegria ou desespero. Já as coisas não se dão conta de sua existência, são meros resultados de processos e forças atuantes no universo, são seres "em si".

Nenhum comentário:

Postar um comentário