domingo, 16 de dezembro de 2012

MITOLOGIA E FILOSOFIA.




O pensamento filosófico distanciou-se do pensamento mítico na medida em que buscou na razão humana respostas para indagações que o homem se faz ao longo dos séculos. Em vez de creditar aos deuses  a criação e a manutenção da ordem universal, como faziam os mitos, a filosofia se lança à tarefa de decifrar com explicações lógicas as causas naturais de todas coisas e seus fenômenos. Tal mudança de atitude mental se deu mediante circunstâncias históricas vividas pelos gregos a partir dos século VI a.C. Foi um período de grandes transformações econômicas e culturais em que se verificou a decadência da sociedade patriarcal e a ascenção de novas classes econômicas ao poder, em particular a classe dos comerciantes.

As inúmeras viagens marítimas comerciais acabaram por "desencantar" o mundo ao redor da Grécia que, de acordo com os mitos, era povoado por monstros e deuses dignos de medo ou respeito. Nessas regiões, consideradas pelos poemas homéricos e por antigas lendas moradas de seres superiores aos mortais, os gregos não encontraram mais que homens comuns, tanto quanto eles voltados às preocupações do cotidiano. Os viajantes também notaram que as crenças e os mitos variam de uma cultura para outra o que faz com  que, por vezes, o que é sagrado para uns, para outros sequer seja digno de nota. As experiências de viagens portanto, tornaram possível a relativização e o consequente enfraquecimento das crenças religiosas e deram impulso às reflexões que se baseiam na capacidade do homem de interpretar por si mesmo o mundo que o rodeia. Tendo a razão como instrumento, a Filosofia passa a repelir  partes constituintes da narrativa mítica, como certas contradições e irracionalidades   usadas para justificar o caráter misterioso dos deusas e suas ações.

No entanto, vários autores, como o francês Georges Gusdorf, destacam o importante papel desempenhado pelo Mito na estruturação do pensamento humano e sua ressonância na Filosofia até os dias de hoje. Para Gusdorf, o Mito mantém-se "como o próprio lar das formas humanas, o princípio último das nossas afirmações" sendo, portanto, uma espécie de fundo de sentido para a vivência humana, o plano da consciência onde encontramos valores que nos fazem humanos diante do mundo. Para o francês, valores formados pela consciência mítica como Liberdade, Justiça, Fraternidade, Igualdade, Progresso, Civilização, entre outros, são fontes de energia a impulsionar as diversas correntes filosóficas que, ao abarcá-las, conseguem sensibilizar e mobilizar os homens à permanente reflexão. O autor nos lembra da herança mítica que mantemos ainda hoje nas religiões e nas culturas e destaca a importância desses dois campos como marcas profundas na identidade dos sistemas filosóficos, visto que tais sistemas são feitos por homens imersos em sua própria história,  tradição, tempo e cultura.

Quanto aos temas que revelam a inquietude e a angústia humanas, quais sejam: a origem do cosmos, a morte ou finitude das coisas, o mal, a eternidade e vários outros, pode-se dizer que, antes de encontrarem campo na Filosofia,  faziam parte das principais reflexões do pensamento mítico. Os mitos já se preocupavam com tais questões que mais tarde se tornariam parte das discussões da metafísica, já pretendiam explicar o que faz o mundo ser como é: atribuiam aos deuses a criação e a manutenção da ordem e das leis do universo cujos ciclos tornam possível a vida e a vida humanamente vivida. A Filosofia desenvolvida pelos pré-socráticos foi o passo decisivo da fuga do caminho dos deuses em direção à rota  da explicação racional das forças reguladoras do cosmos. Os primeiros filósofos buscaram o princípio universal que, apesar de estar presente em todas as coisas, faz-se oculto aos sentidos, o princípio que permanece para além das aparências concretas, mas se oferece a todo instante aos que são capazes de desvendá-lo com o uso da razão. Entretanto, como dar conta da explicação de um princípio único se as coisas se nos apresentam de modo tão múltiplo, com uma diversidade aparentemente infinita? Como acreditar em algo capaz de manter-se uno, indivisível e imutável em essência diante de uma realidade em constante transformação, feita de coisas efêmeras, que se corrompem com a ação do tempo e das forças naturais? São questões que a metafísica tem em comum com a mitologia mas que em uma e em outra forma de consciência são tratadas de perspectivas bem diferentes: a primeira, assumindo o ponto de vista da razão, a segunda baseando-se na crença religiosa. Fazendo-se essa ressalva, pode-se afirmar sim, que a mitologia constituiu-se em uma primeira metafísica.


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