quarta-feira, 26 de novembro de 2014

FILOSOFIA DA NATUREZA.

QUATRO MOMENTOS DA 
 FILOSOFIA DA NATUREZA







Este texto é um resumo das quatro principais perspectivas filosóficas sobre a natureza desde Platão e Aristóteles: a defendida por estes dois filósofos gregos e as concepções dominantes na Idade Média, na Idade Moderna a partir de René Descartes, e no mundo contemporâneo, em que se destacam críticas à modernidade e uma renovadora visão da ética atrelada à natureza.

Na Antiguidade, a natureza era considerada a dimensão totalizadora da realidade, a realidade suprema que a tudo abrangia: tanto a ordem do mundo sensível quanto as  dimensões humanas da Ética e da Política. Para Aristóteles, a natureza possuía o telos para o qual tudo se direcionava, o sentido último de tudo que existe. Os valores morais, portanto, deveriam se orientar pelo Bem indissociável da natureza e capaz de guiar nossas ações.

Essa perspectiva foi esvaziada a partir da Idade Média, quando passou a vigorar como hegemônica a doutrina cristã. Este esvaziamento da natureza como portadora do “telos” de tudo deveu-se ao fato de a filosofia cristã colocar Deus como o fim supremo a que tudo se destina, instância do Bem por excelência que a tudo orienta e atrai, sendo Ele, portanto, o princípio que norteia a conduta humana na via da perfeição. A natureza seria, para Santo Agostinho, não mais que um espelho a refletir o espírito divino mas que não ofereceria o caminho mais seguro até Deus. Este caminho deveria ser encontrado na alma humana, já que o homem foi criado à imagem e semelhança de seu Criador. Esta desvalorização da natureza acabou por provocar o abandono das pesquisas empíricas ligadas aos fenômenos naturais.

Na Idade Moderna, principalmente a partir de René Descartes, teve início o processo de dessacralização da natureza, que passou a ser vista como objeto a ser explorado pelo sujeito posto à parte dela. Cabe ao sujeito do conhecimento encontrar os métodos mais eficientes para manipular a realidade material. 

Assim, a natureza vai deixando de ser pensada filosoficamente para ser considerada instrumentalmente. Para os filósofos modernos, a natureza poderia ser comparada a um relógio, a um mecanismo que funciona com precisão, cabendo ao homem desvendar todas as formas de interação (e seus desdobramentos) das partículas invisíveis e indivisíveis que compõem o cosmos.

A natureza é tomada como sendo indiferente às questões humanas, como máquina isenta de valores éticos e morais. Com relação à Ética, a solução de Descartes foi criar uma moral provisória para lidar com as situações em que decisões imediatas se apresentavam necessárias. Como o filósofo não se aprofundou no desenvolvimento de sua teoria moral, o que prevaleceu foi sua abordagem teórica do conhecimento a qual veio a se tornar uma espécie de metafísica artificial.

Os desdobramentos da concepção moderna de natureza levaram filósofos e cientistas da contemporaneidade a uma crítica radical deste modelo. Para eles, as consequências dramáticas da modernidade não são apenas parte de roteiros de cinema mas se fazem presentes em nosso cotidiano. Catástrofes e acidentes ambientais são vistos por uma perspectiva política, como resultado da contínua ação exploratória que visa apenas o lucro.

Por isso, no mundo contemporâneo, tem se desenvolvido uma nova ética que serve de contraponto à concepção moderna de natureza. Uma ética que, em vez de oferecer princípios para serem aplicados à vida, toma a própria vida como princípio fundamental de sua constituição. Além disso, a própria ciência vai, aos poucos, evoluindo no sentido de abandonar uma lógica determinista em favor de uma visão que se aproxima mais da imponderabilidade dos fenômenos ligados à natureza.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

ZYGMUNT BAUMAN - ÉTICA PÓS-MODERNA.

 Ética pós-moderna 



















QUESTÕES DE MORALIDADE E UNIVERSALIDADE EM ZYGMUNT BAUMAN

Sérgio Augusto Borges



Resumo: este trabalho mostra alguns dos pontos mais importantes das reflexões de Zygmunt Bauman a respeito da Ética na era moderna e na pós-modernidade. Nos últimos cinco séculos, nos deparamos com diversas tentativas de se chegar a concepções éticas universais que foram sintetizadas em códigos provados como falhos e incompletos. A tão propalada universalidade de leis morais revelou-se sempre precária e logo à primeira vista, apenas pelo fato de existirem vários códigos com a mesma pretensão: ser universal. Para Bauman, a alternativa que se abre para a definição de parâmetros éticos na pós-modernidade é a de uma corajosa valorização dos sentimentos e impulsos morais comuns a toda pessoa humana. Nestes residiriam a base da verdadeira universalidade ética e não em códigos que se   autoproclamam universais mas com universalidade circunscrita a fronteiras estatais, fato que, por si só, anula qualquer pretensão ao universal. 

Palavras-chave:  ética, pós-modernidade, universalidade, moralidade

Abstract: this paper shows some of the most important points of the reflections of Zygmunt Bauman about ethics in the modern era and in post-modernity. In the last five centuries, we have faced several attempts to reach universal ethical views that were synthesized in codes as proven flawed and incomplete. The much-touted universal moral laws proved to be always precarious and at first sight, just because there are several codes with the same intention: to be universal. For Bauman , the alternative that opens to the definition of ethical standards in postmodernity is a bold enhancement of feelings and moral impulses common to every human person . These reside the basis of true universality and ethics codes not in self-proclaimed universal but with universality limited to state borders, a fact which in itself invalidate any claim to the universal.

Keywords: ethics, post- modernity, universality, morality


Perspectivas moderna e pós-moderna de moralidade.

A problemática da moralidade começou a tomar suas feições atuais no início da era moderna, quando o indivíduo passou a se firmar como autônomo para sua própria autoconstituição. Até então, as normas de conduta sociais eram apresentadas como se fossem de origem divina. Na perspectiva de tais sociedades tradicionais, não havia espaço para contradições entre o que era dado como certo e o que era tido como errado. A lógica que imperava era a lógica da disjunção “ou/ou”. A escolha de caráter pessoal, independente dos valores em voga, era tomada como  desviante, uma vez que a escolha correta já nos era dada por Deus. Liberdade humana, portanto, assumia um caráter de erro desafiante dos costumes.  O que se afastava do certo – modos e meios de vida estabelecidos por Deus – só podia ser errado, transgressor, pecaminoso.Para fazer valer as normas sociais, a sociedade contava com mecanismos extremos de administração da conduta individual, entre eles uma inflexível e onipresente vigilância coletiva.

Com o afrouxamento da força da tradição, aliviou-se o peso das imposições morais ditas divinas. Foi uma consequência do contexto histórico que favoreceu uma crescente pluralidade de situações mutuamente autônomas para homens e mulheres. O progressivo centramento das decisões na esfera do indivíduo abalou as rígidas concepções da ética tradicional pois fez aflorar a infinidade de interesses e de concepções de mundo. A lógica “ou/ou” passou a não ter mais sentido, visto que o Bem passou a apresentar uma face contraditoriamente caleidoscópica, no sentido de que o belo poderia não ser o verdadeiro, o agradável poderia também ser o falso, o útil poderia não ser bom. Abriu-se, desta forma, ao indivíduo, um horizonte de escolhas em que era preciso adotar critérios estritamente pessoais para a tomada de decisões. Tornou-se necessária, para cada um, a constituição da própria identidade por meio do processo contínuo de tomada de decisões. A complexidade do mundo moderno se apresenta na forma de ações que a pessoa precisa escolher, ações que escolheu dentre outras que poderia escolher mas não o fez. Por isso, é imprescindível calcular, medir, avaliar.

Assim, cai por terra o tipo de lógica que apresentava uma das vias de conduta moral como estritamente certa, a que seria garantidora o bem enquanto outras, também possíveis, deveriam ser descartadas por nos conduzirem fatalmente ao erro. Mas, apesar dos caminhos abertos para a auto-escolha individual, o homem moderno parece ter se sentido órfão de uma ética uniabarcante, que estruturasse a sociedade dando-lhe sentido moral coletivo apesar dos caminhos abertos para as individualidades. Uma solução seria voltar atrás ressuscitando um novo credo religioso, outra seria estimular uma ideia não-religiosa mas convincente o bastante para compreender o todo social. A grande dificuldade era que a nova sociedade já se estruturara com homens e mulheres com vidas fragmentadas, separadas em muitas metas e funções soltamente relacionadas. Num mundo assim esparso, dividido, como esperar o sucesso de uma ideia que se pretendia “onicompreensiva” que promovesse uma visão unitária? O dilema levou legisladores e pensadores modernos a tratar a moralidade como algo que precisa ser planejado e enxertado na conduta humana, não como um “traço natural” do homem. Por isso, tentaram compor e impor uma ética como um sistema coeso de regras morais transmitidas por meio de ensinamentos para posterior cobrança e obediência.

As inúmeras tentativas de substituição da crença pela razão não lograram êxito.  Os códigos planejados por filósofos continham, implícita em suas fórmulas, a velha desconfiança de que a liberdade de escolha sempre se dirige para o erro, de que, sem vigilância, os homens tendem à degeneração e à  corrupção moral. A desconfiança fazia, então, com que a liberdade tivesse que ser contida e até reprimida por ser considerada fonte de instabilidade. Era preciso criar mecanismos de recompensa e de punição para que os indivíduos chegassem, sob cálculo, à conclusão de que lhes valeria a pena seguir o caminho da moralidade estabelecida para satisfazer os próprios interesses.

Mas como seria possível o êxito de códigos que desqualificam a potência primordial da conduta moral, qual seja, a autonomia de escolha, já que tais códigos  apontam para a estruturação de uma moral heterônoma, com normas impostas de fora pra dentro, sob coação, por uma administração racional?A resposta dos filósofos modernos foi considerar esta uma  aporia apenas temporária, apenas um resto de não-razão, nada que não pudesse ser resolvido no decorrer do “progresso da humanidade”. Afinal, a modernidade se caracteriza, justamente, pela solução de conflitos, ou seja, todos os conflitos têm soluções possíveis que estão à espera de serem encontradas. Por isso, duas “bandeiras gêmeas” se impuseram para filósofos e legisladores do mundo moderno: universalidade e fundamentação. As duas bandeiras foram erguidas com a pressuposição de que boas regras são aquelas artificialmente planejadas. Para os legisladores, esses ideais de universalidade e fundamentação seriam atingidos por meio da coação que levaria à uniformização dos valores e práticas sociais. Para os filósofos, fundamentos epistemológicos seriam capazes de construir modelos de natureza humana universal: criam que haveria de haver prescrições éticas reconhecíveis por toda criatura humana só pelo fato de serem criaturas humanas. Assim, os filósofos ajudaram a construir o sujeito do estado como a síntese do destino humano.

“O pensamento e a prática morais da modernidade estavam animados pela crença na possibilidade de um código ético não-ambivalente e não-aporético”. Para ZigmuntBauman, o pós-moderno é a descrença nessa possibilidadepois “uma moralidade não-aporética, não ambivalente, uma ética universal e objetivamente fundamentada talvez seja uma impossibilidade, uma contradição nos termos”.

Responsabilidades morais e normas éticas.

À deslegitimação das instâncias garantidoras dos códigos de conduta das sociedades tradicionais, seguiu-se um certo vácuo de normas que pudessem se legitimar como aquelas que visam o bem comum. Esta ausência foi como que uma semente de fruto amargo deixada no solo em que se plantou a modernidade, qual seja, o solo da individuação em que, ao sujeito, é designada maior autonomia para tomada de decisões.

A liberdade para escolhas individuais com base em critérios definidos por conta própria no lugar da sujeição a padrões de conduta assumidos de forma heterônoma, pode até ter sido saudada por intelectuais renascentistas como um desatar de condicionamentos que estagnavam a sociedade fazendo, por exemplo, com que a mera circunstância de nascimento fosse fator determinante definitivo e irrevogável.

No entanto, a carência de normas gerais explicitamente assumidas por todos gerou insegurança e instabilidade na convivência entre sujeitos que deveriam fazer parte do todo incipiente da nova ordem burguesa. A tal semente feita de ausência gerou a crise ética que se estendeu ao longo de toda a era moderna. Crise que se tentou superar com elaborações constantes de códigos éticos que tinham em comum a pretensão de dar conta da totalidade da convivência humana.
 Os sucessivos fracassos parecem ter acentuado em vez de refreado a obsessão por leis uniabarcantes. Obsessão que os óculos da modernidade faziam ser chamada de otimismo. Justo nome na visão de quem havia experimentado diversos triunfos da razão por conta da evolução da ciência. O sucesso, portanto, era uma questão de tempo, pois este sempre nos leva ao aperfeiçoamento. Assim justificou-se a crença na possibilidade de um futuro conjunto sistêmico de leis morais que visem ao bem de todos e de cada um.

Um passo mais sofisticado nessa busca por uma totalidade sistêmica no campo da moral foram as teorias epistemológicas que pretenderam evidenciar alguns princípios universais constitutivos da razão   humana. Princípios que devem, necessariamente, ser levados em conta na definiçãode quaisquer normas de convivência.  Tais teorias epistemológicas não foram o bastante para evitar novos insucessos de códigos pretensamente uniabarcantes. Sérios obstáculos se impuseram à teoria de Immanuel Kant que nos deixou como legado a defesa da autonomia do sujeito considerado por ele capaz de definir por si mesmo suas as próprias leis de conduta com base em princípios racionais que podem ser compartilhados por todos os seres humanos. O filósofo de Königsberg talvez já intuísse que a “minoridade” dos sujeitos causada pela imposição de códigos morais, em vez da adoção voluntária de leis universais pelos indivíduos, pudesse ser a principal causa das fracassadas regulamentações.

Para Zygmunt Bauman, um dos maiores obstáculos à autonomia dos sujeitos pretendida por Kant sempre foi a desconfiança nos “eus reais”, desconfiança que persistiu como nódoa na tão cultuada racionalidade do mundo moderno. Afinal, não é a razão um bem compartilhado por todos os seres humanos, sem exceção? Se todos somos capazes de pensar e de certificar-nos, por conta própria, que o bem que interessa a cada um é o bem que deve interessar a todos, por que então duvidar que homens e mulheres deixarão de fazer escolhas individuais de acordo com normas voltadas para o bem comum? A origem desta contradição, para Bauman, tem a ver com a própria maneira de ser da autêntica moralidade, que tem na ambiguidade sua principal marca. Uma condição que, de acordo com o sociólogo, foi ignorada por legisladores e filósofos por estes sempre temerem o que é de difícil ou mesmo de impossível compreensão por meio de teorias. Para eles, o que é inconstante, imprevisível, imponderável, deve ser forçosamente envolvido por códigos de conduta que orientem as ações.

Então, a moralidade oficial precisa equilibrar-se o quanto for possível em um sistema de punições e recompensas que faz com que a liberdade de cada um seja direcionada para fazer escolhas planejadas, calculadas, mediadas pelo amor próprio e pela razão para se evitar o que é mal e atingir o bem para si. Produz-se, então, uma cadeia de ações que fogem à moralidade, pois esta não pode ser feita de ações por interesses.

Para Zigmunt Bauman, a ética pós-moderna é aquela que abandonou a ilusão da universalidade para leis morais e assume que é a competência moral de seus membros que torna possível a existência contínua e o bem estar da sociedade. Segundo Bauman,  sujeitos capazes de decisões próprias sem serem coagidos por um sistema de normas elaboradas por legisladores que contam com a força para fazê-las cumprir, são sujeitos que desenvolvem o senso de responsabilidade necessário para lidar com situações que exigem consenso. 


O que Bauman chama de repersonalização da moralidade começa com a valorização do fato da “intimidade moral”, que ele compara ao cogito cartesiano como última instância do sujeito a qual é impossível negar. É na intimidade moral que residem os impulsos morais e as emoções, matérias-primas com as quais se faz a autêntica moralidade da convivência humana. Autêntica porque autotélica e indiferente a propósitos e utilidades. É neste estado bruto da moralidade, tão temido por legisladores e filósofos, que podemos encontrar o sedimento capaz de fazer com que a razão de ser da sociedade se manifeste a todos os seus membros. Se é de cada um de nós que partem os sentimentos que são acolhidos em uma cadeia intersubjetiva de interpretações, podemos nos sentir como bases de sustentação da sociedade e, como tais, moralmente responsáveis em vez de meros cumpridores de normas. Em vez disso, a insistência em modelos de sociedade que não promovem a responsabilidade individual acaba por aumentar as chances de ocorrer o que mais se teme: o triunfo da imoralidade. Isso porque leis coercitivas partem da pressuposição de que todos não são confiáveis e devem ser submetidos à coação moral. Ficam, então, isentos de responsabilidade e, em consequência, incompetentes para tomada de decisões morais. Essa incapacidade faz com que, em momentos de crise, os sujeitos aceitem com facilidade sistemas opressivos de governo que apresentados como solução. 

A universalidade ilusória

A moralidade autêntica não é instância que se submete a moldes ou manipulações por parte de poderes instituidores de códigos éticos. Escapa, como água por entre os dedos, a toda tentativa de determinação forçada. No entanto, o homem parece não estar disposto a abrir mão das tentativas de encontrar o código ético por excelência, que, julgando-se expressão definitiva de nossa natureza, poria fim a todos os dilemas morais. Esta foi a busca implementada pela modernidade, na qual caminhamos com passos por sobre tábuas de salvação de novos códigos, abandonadas uma após a outra tão logo percebemos que a água já encobre nossos pés.

Mais do que ninguém, os filósofos sabem da condição relativa dos códigos éticos, os quais não escapam da temporalidade histórica. É por isso que, para Zygmunt Bauman, as imagens de bem e de mal que partilhamos não duram mais do que o tempo do consenso que nos permite alguma estabilidade social, algum sentido de conjunto temporário. Para homens e mulheres absorvidos em suas tarefas cotidianas, é provável que não haja paralisantes inquietações quanto ao que devem ou não fazer. Parecem satisfazer-se em agir conforme aquilo que o grupo espera de cada um, tendo a garantia de que fazem o que é aprovado pelas pessoas que compartilham daquele mesmo espaço e “momento histórico de eticidade”. É algo que tranquiliza a consciência saber que os “iguais a nós” teriam feito o mesmo ou quase o mesmo que fizemos, tendo à disposição a mesma reduzida escala de graus de uma mesma opção.

A tranquilidade da consciência, portanto, é grande devedora da sensação ou crença da universalidade das normas morais em vigor. Por isso, inquietações sempre hão de sobrar para filósofos encarregados da manutenção de tal crença, uma vez que a ela é que se vincula a obediência da maioria. Convencida por filósofos quanto à universalidade das normas, as pessoas dificilmente se questionam quanto à relatividade das mesmas, pois desconhecem que outras pessoas em outros tempos e lugares, portadoras de noções distintas das fronteiras entre o bem e o mal, tomariam decisões inteiramente diferentes das suas. Mas esse desconhecimento não diminui a necessidade de que o poder de persuasão dos filósofos seja forte o bastante para estar à altura da carga de incertezas, ansiedades e medos de homens e mulheres quanto ao futuro. São sentimentos e emoções capazes de fazer emergir a crise dos valores ao escoar a credibilidade de códigos construídos e mantidos por artifícios de retórica e da força.

A necessidade de grandes esforços retóricos deriva, em muito, da incapacidade em lidar de forma tranquila com a diversidade de formas de se encarar o bem e o mal. Segundo Bauman, poucos autores foram como Montaigne que escreveu sobre isso de forma resignada e equânime. As diferenças, na maioria dos casos, são vistas com horror, como supremo absurdo a desafiar o pensador pela permanente ameaça que representa às conquistas do mundo civilizado. A saída para o dilema da diversidade de concepções sobre bem e mal, tem sido quase sempre a mesma: afirmar a verdade como sendo única por definição e, por consequência, também a retidão e os preceitos morais. É preciso, portanto, afirmar com todas as letras que outras normas são não apenas diferentes mas também erradas e más e que são aceitas apenas por ignorância, imaturidade ou  por má-vontade, acusações que servem de escada pela qual se eleva a autoridade das normas morais defendidas.
Além da negativação das normas alheias, os defensores da moralidade que se sabe apenas mais uma entre tantas, precisam, é claro, embasar seus argumentos em alguma forma de positividade. O mais usual tem sido atribuir às normas que defendem uma superioridade que seria garantida pelo estágio evolutivo presente, ponto de culminância do processo constante de aperfeiçoamento da humanidade ao longo do tempo. Dessa forma, temporaliza-setoda e qualquer alteridade feita pelo homem, inclusive a alteridade ética. Tudo o que dentro das normas em uso se apresenta como contraditório, dissonante, ou que não responde adequadamente aos desafios e necessidades históricas é considerado mero obstáculo passageiro, algo a que a evolução saberá dar conta. A temporalização atesta ainda que outras formas de moralidade são como relíquias que dilataram seu tempo, sendo praticadas por quem já está de fato morto, como cadáver insepulto que permanece inconvenientemente instalado na ante-sala da era moderna.

A maneira de lidar com qualquer presença de contundente negação da norma é o menosprezo. Por esta via, tudo que ameaça os princípios de coerência e congruência, marca profissional dos filósofos, é tomado como pura aberração. Claro que, para ter a anuência das pessoas quanto a isso, é preciso que estes mesmos princípios da lógica filosófica  tenham sido incutidos  nas mentes dos que estiverem sob a jurisdição da norma ou mesmo que neles já estejam projetados os interesses de poderosos locais. Poderosos que, para defenderem suas próprias ambições, usam como embuste bandeiras universalistas.  A difusão das formas de raciocínio coerente é tarefa preponderante de todo filósofo comprometido com a justificação das normas pois trata-se de uma forma de pensar que tende à previsibilidade, característica comportamental valiosa para todo e qualquer governante que exerce o poder em nome de sua própria vontade.

A crença dos arautos da modernidade de que possuíam uma ordem moral superior e mais avançada no tempo transformou-se em sólida convicção, passando a ser usada como justificativa para nações-estado imporem-se sobre outras. Afirmavam ser impulsionadas pela causa enobrecedora de fazer a civilização espalhar-se pelo globo. A alteridade cultural projetada sobre a seta do tempo, forjava a visão do outro como estagnado no passado, sempre associado ao que ainda não evoluiu ou aperfeiçoou-se. A estas relíquias incongruentes destinadas à extinção, a história não reserva outra saída a não ser a subordinação àqueles capazes de difundir o conhecimento que leva à mudança para o melhor.

As inquietações do universalismo.

Como discurso moldado para legitimar o poder estatal, o universalismo encontrou adversários postos tanto como força centrípeta de implosão, como força centrífuga de dissolução de sua vontade. Como representante da primeira, uma coleção heterogênea de paroquianos, parentes e outros habitantes locais; como agenciadores da segunda, filósofos de boa-fé para quem o autêntico postulado da universalidade põe abaixo não só as atribuições morais de comunidades locais, transformadas em unidades administrativas da nação-estado, como também a autoridade moral reivindicada pelo estado. Foram adversários que se postaram contra todo e qualquer projeto universalizante que revelasse as ambições convenientemente uniformizantes para estado moderno

Para os comunais, a prática moderna de universalização manifestou-se como força de opressão, ato de violência praticado contra a liberdade humana, ultraje e ofensa esmagadora de culturas estabelecidas por sucessivas gerações. Seus costumes locais foram ridicularizados e relegados ao plano das superstições que resistiam ao poder centralizador, tendo que, por isso, ser condenadas à morte.  Ligadas que estavam ao tempo e ao território, as culturas localizadas foram envergadas por duros golpes de espada de certos princípios universais que exigem que normas morais passem pelo crivo da extratemporalidade e da extraterritorialidade.

O golpe, no entanto, produziu também estragos no mesmo ponto de onde partiu. Ao mesmo tempo em que se impunha por meio da honrosa alegação de alojar-se no cerne da natureza humana, o código moral estatal desmascarava-se a si mesmo ao limitar sua abrangência aos territórios sujeitos a determinada influência política ou reivindicados por esta. Pregava, portanto, uma universalidade natimorta pelo fato de circunscrever-se às fronteiras da nação-estado, contradição de origem que se revela como expressão de interesses apenas diversos dos interesses de lideranças locais. Afinal, a parcialidade implícita em códigos com validades delimitadas por fronteiras os exclui por completo da qualidade de universais. Que argumentos, então, poderiam ser usados para fazer com que membros de comunidades locais adquirissem visão mais ampla e facilitadora da substituição de um código moral por outro?  Como convencê-los a elevar seu ponto de vista a um plano superior e mais abrangente, imparcial, crítico de costumes enraizados e livre de pressões comunais. Por que deveriam desatrelar-se de lealdades e particularismos comunais e aceitar a submissão ao modelo de cidadania arquitetado pelo estado? 

Também para os universalistas de boa-fé, as práticas universalizantes dos estados são inaceitáveis. Para eles, é nulo o princípio aristotélico da política como instância primeira de gestação do humano. O autêntico postulado da universalidade, portanto, destoa de toda e qualquer comunidade política autodeterminada, seja ela de âmbito local ou nacional. A exigência universalista é sempre direcionada contra a polis, uma vez que esta, como recurso de autoafirmação, sempre defende a particularidade de seus membros em relação aos membros de outras polis. O outro, a alteridade localizada além das próprias fronteiras, contrapõe-se ao eu “situado” que se julga membro da comunidade cuja moral seria a universalmente válida, uma oposição capaz de suscitar intolerâncias recíprocas. Para os universalistas mais exigentes, a moralidade verdadeira se radica apenas em qualidades e capacidades possuídas por indivíduos enquanto pessoas humanas. O que for contrário a isso não passa de falso código moral, proclamado por poderes bem mais estreitos que o universal. Consideram códigos morais surgidos de interesses grupais ou em nome de “suprema sabedoria grupal” como instâncias de conspiração entre caudilhos atacados de ganância pelo poder.

Pregam os filósofos de boa fé que um poder, para ser universalista de fato, deve ser capaz de identificar a população que está (ou que pode vir a estar) sob sua administração com a espécie humana em sua totalidade.  Porém, uma tal perspectiva de condução do poder tem pouquíssima probabilidade de ser levada a cabo num mundo em que as agências que promovem o universalismo não detém uma soberania que seja verdadeiramente universal. Na realidade desenhada pelo mundo moderno ainda em vigor, as fronteiras dos estados é que delimitam o horizonte universalista. Com isso, o forma-se um emaranhado de autoridades que se consideram detentoras de padrões universais de moralidade, diversidade de posições que põe sob suspeita o valor de cada uma das ditas universalidades. 

Neste cenário de “universalidades” circunscritas a diferentes domínios limitados por fronteiras entre vizinhos, cria-se a solidariedade entre os governantes, o que possibilita que cada um deles, reconhecendo os demais como soberanos e respeitando os limites territoriais das jurisdições, governe de acordo com as leis proclamadas em seu território. É esta solidariedade que serve de base para a formação de um novo modelo de normas morais que possibilita a convivência entre as nações e entre os povos. Segundo Bauman, a exemplo do ocorrido no interior de cada estado, as normas morais supra-estatais também são promulgadas segundo o padrão da lei universal mas acabam por assemelhar-se a normas de relações internacionais. Tornam-se, portanto, um arrazoado de diplomacia, barganhas e busca de “pontos de consenso” genuínos ou fictícios. No final das contas, a universalidade supra-estatal acaba por ter pouco de raízes comuns e muito de denominador comum. Não há como esconder a evidência de que existem várias concepções de moralidade universal e que somente a superioridade da força de um dos poderes permite que sua concepção prevaleça sobre as outras.

Para Zygmunt Bauman, códigos de moralidade supranacionais são mais uma forma de conceituação processual de universalização, um tipo de conceituação que serve de último abrigo ao sonho de universalidade como destino último da espécie humana. Foi este o abrigo que ofereceu segurança à afirmação de que a “marcha do tempo” nos levará, irremediavelmente, à universalização: confiança tão grande no futuro como portador do remédio para todos os males, que é capaz de toldar os olhos para a realidade das contradições que se apresentam no projeto universalista moderno. Não foi à toa que Diderot nos chamou a atenção para a enorme crença que o homem moderno depositou nos tempos que estão por vir, atribuindo a estes a capacidade de corrigir todas as injustiças do presente e considerando-os como estuários de um movimento que caracteriza a própria humanidade, o movimento das qualidades que desafiam cada um dos seres humanos. Foi uma confiança que se alimentou da imaginação e da fantasia, forças humanas capazes de se espalhar livremente no campo fértil do porvir sem terem que se incomodar com  experimentações empíricas.

Coube à fase pós-moderna a destruição de toda essa crença que se tornou característica fundamental da era moderna. Na pós-modernidade, o que se apresenta dentro do contexto da historiosofia da universalização é a chamada globalização. Esta, no entanto, não envolve a busca de unidade entre as autoridades políticas, culturais e morais. Os fatores que se supõem “globalizar” são considerados mais não-nacionais que inter- ou supra-nacionais, fatores como a difusão global da informação, da tecnologia e interdependência.

A ideia de moralidade universal, depois de despedir-se da fundamentação na “missão civilizadora” das nações-estados que se proclamavam mais desenvolvidas ou mais avançadas culturalmente, se é que deva sobreviver, só pode ter como pontos de apoio em fatores que são inerentes à espécie humana: os impulsos morais e pré-sociais, anteriores, portanto, a todo e qualquer resultado comum ao processamento social, produtos derivados de ações legisladora, ordenadora e educadora.

No campo de batalha em que nos deparamos com pluralidade nova ou renovada de desafios morais, estão à espreita os comunitários, adversários dos pregadores do universalismo e que oferecem como alternativa um já familiar refúgio cômodo e acolhedor da “comunidade nativa”.  Esta é a alternativa que resta aos universalistas que sucumbirem na batalha ao aceitarem como eterno e irremediável fato a persistência da pluralidade de soberanias políticas e econômicas. Uma aceitação que pode ser considerada como posição conformista e contrária à persistência na promoção de uma moralidade distante de determinações grupais ou estatais mas ligada à totalidade da espécie humana, posição que exige forte resistência por estar ancorada no território frio e abstrato dos valores morais universais.   

Considerações finais.

No campo de batalha em que se trava a luta por hegemonias de concepções morais, os defensores de uma moralidade que se ancora na pessoa humana têm como adversários tanto os grupos chamados comunais, defensores do eu “situado”, como as organizações políticas estatais. Ambos são portadores de concepções destrutivas do universalismo proclamado pelos filósofos de boa-fé: os comunais porque o tomam como ultrajante violação de direitos, veículo de opressão e de violência contra a liberdade; as organizações políticas estatais porque restringem e congelam a perspectiva universalizante no interior das fronteiras nacionais para atender a interesses políticos. Ao contrário do que é pregado pelos universalistas, as nações-estado particularizam seus membros frente aos de outras nações, propagando entre seus indivíduos a crença em sua unidade e semelhança que os opõe aos estrangeiros, tomados como outros diferentemente situados por estarem enraizados em outras polis.

Segundo Bauman, a alternativa restante para os universalistas de boa-fé é, em primeiro lugar, o não conformismo em relação às crenças que consideram irremediável e sem fim a existência de pluralidades de soberanias políticas e econômicas, as quais teriam sempre nas mãos o poder de moldar e manipular as normas morais. Em segundo lugar, a defesa de uma moralidade fundamentada em nossos impulsos e sentimentos morais, traços que fogem às determinações de processos de constituição de moralidades heterônomas instaurados sejam no seio de uma comunidade local, sejam no de uma comunidade nacional. A formulação e a defesa de uma tal moralidade universal requer uma visão mais tranquila quanto ao fato de as imagens de bem e mal diferirem de um lugar para o outro e de um tempo para outro tempo. Afinal, tais imagens têm sido forjadas não a partir da perspectiva do universalismo mais abrangente – aquela que tem como base a própria espécie humana - mas sim a partir de perspectivas circunstanciais, originadas de interesses políticos e econômicos.

Referência

BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus, 1997.