Aula 3 – Filosofia da
Matemática.
Conhecimentos analítico e sintético
Sérgio Augusto Borges
De acordo com a Filosofia da Matemática, é na ciência Matemática
que mais se apresenta um tipo de conhecimento considerado dos mais precisos e
abrangentes e que podemos obter sem recorrer à experiência, sem necessitar dos
sentidos. É o conhecimento que foi denominado pelo filósofo Imanuel Kant de conhecimento sintético a priori. Para dar uma noção precisa do que seja este tipo de
conhecimento comecemos por explicar o porquê da palavra “sintético” aí
presente: o termo sintético se explica pelo motivo de que este conhecimento –
conhecimento sintético a priori - é capaz de desvendar a relação entre dois
conceitos que, à primeira vista, não têm qualquer conexão entre si. O
conhecimento sintético pode ser comparado às ligações químicas que ocorrem
entre elementos completamente diferentes, mas que, ao serem misturados, formam
algo mais, dão origem a outro elemento também consistente, mas que não estava necessariamente
presente naqueles elementos químicos que o formaram. Ou seja, o novo elemento pôde
ser formado graças a uma síntese de
outros elementos que tinham apenas o potencial de formar este novo elemento.
A síntese química
ocorre no plano empírico. Na Filosofia, o corre a síntese de conceitos mentais,
e ela pode ser feita sem recorrermos à experiência empírica, ou seja, pode
ocorrer independentemente dos órgãos dos sentidos. Vamos citar um exemplo: a
frase “a linha é a menor distância entre
dois pontos” pode ser considerada um conhecimento sintético a priori. Porque este juízo não está
presente ao analisarmos os conceitos dos termos presentes na frase... Ou seja,
a afirmação de que “a linha é a menor
distância entre dois pontos” não pode ser deduzida das análises, em separado,
dos conceitos de linha, ponto e distância. Não há nada nas definições destas três palavras que nos
leve a crer que o juízo formulado a partir delas seja verdadeiro, ou seja, o
juízo de que “a linha é a menor distância entre dois pontos” não é intrínseco
aos 3 conceitos analisados conjuntamente e muito menos fica explicito ao
analisarmos esses três conceitos em separado. Os conceitos de linha, ponto e
distância já estavam presentes em nossa mente quando formulamos o juízo,
portanto, não tinham relação com os sentidos, eram conceitos a priori que, ao serem sintetizados pela
razão, formaram um novo conhecimento, um conhecimento
sintético a priori, a priori porque não precisamos, recorrer
à experiência para deduzir o juízo “a linha é a menor distância entre dois
pontos”.
Para que fique ainda mais claro o que seja o conhecimento
sintético a priori, que é o conhecimento
tido como o mais completo pelos filósofos, vamos agora definir um conhecimento
que se diferencia dele: vamos falar do conhecimento analítico. Para estabelecer
essa distinção, o filósofo Emanuel Kant recorreu à noção de juízo. Segundo ele,
temos um juízo quando sabemos alguma coisa ou quando temos uma crença de
qualquer espécie. O ato mental de formular um juízo é um ato de ligar conceitos
que estão reunidos na consciência. Por exemplo: alguém que sabe serem todos os
solteiros pessoas não-casadas reuniu, em sua consciência, o conceito de
solteiro e o conceito de não-casado (estes conceitos foram ligados de uma maneira
que a Lógica chama de universal afirmativa). O juízo segundo o qual todos os solteiros são não-casados é
exemplo de um juízo analítico, já que o conceito de não casado é parte
intrínseca, é inerente ao conceito de ser solteiro. Aqui, mais uma vez, podemos
fazer uma comparação com a Química: nesta ciência fazer uma análise é o ato de
isolar de alguma coisa um de seus componentes, ou seja, podemos perceber, por
análise, o que está contido em uma
determinada substância, o que é uma propriedade inerente a determinada
substância, sem a qual, tal substância não seria ela mesma, seria algo
diferente do que é.
Então, seguindo as ideias de Kant, podemos definir dessa
forma a diferença entre conhecimento analítico e conhecimento sintético: um
juízo é analítico se não for nada mais que a reflexão em torno dos conceitos do
juízo e em torno da forma de combinar esses conceitos. Quando o juízo é
analítico esta reflexão é o bastante para nos dar a certeza de que o juízo é
verdadeiro. Mas em um juízo sintético essa reflexão em torno dos conceitos e de
sua forma de combinação é insuficiente para nos dar a certeza de que o juízo é
verdadeiro. Para saber da verdade deste juízo é necessário apelarmos para algo
mais.
O mesmo raciocínio pode ser feito substituindo-se o conceito
de juízo pelo de enunciado. Isso, para evitar o preconceito dos que afirmam que
a noção de juízo tem um viés demasiadamente psicológico ou refere-se apenas a
um fenômeno mental. Assim, um enunciado
será sintético se
a mera compreensão deste enunciado nunca for suficiente para determinarmos sua
verdade. Um enunciado sintético é aquele cuja verdade não pode ser
determinada apenas por meio da compreensão deste enunciado. Os exemplos
mais bem acabados de verdades analíticas são as verdades lógicas. Então,
reparem em duas formas de verdades lógicas, frases que têm as seguintes formas: primeira: “Todos os isto e aquilo são isto e aquilo”. Segunda: “Se alguns assim são tais e tais, então
alguns tais e tais serão assim assim”. As duas formas lógicas apresentam
verdades incontestáveis. Todo e qualquer conteúdo que possa ser encaixado
nessas duas formas lógicas, nos indicará imediatamente algo verdadeiro. Um exemplo com a primeira forma, ou seja, “Todos os isto e aquilo são isto e aquilo”:
“Todos os cães são cães”. Um conteúdo
que se encaixe na segunda forma, a forma lógica “se alguns assim são tais e tais, então alguns tais e tais serão assim
assim”: a frase “se alguns cães forem
criaturas inteligentes, então algumas criaturas inteligentes serão cães”.
Não há dúvidas de que os dois enunciados acima são verdadeiros. São verdadeiros
simplesmente por causa da maneira como estão arranjadas as palavras lógicas
“todos”, “alguns” e “se”. Portanto, são verdades lógicas. Podemos afirmar que
todos os enunciados (ou juízos) que têm formas lógicas que fazem com estes
enunciados sejam verdadeiros, são enunciados analíticos. Os enunciados
analíticos dependem apenas de suas formas lógicas para serem verdadeiros.
Mas, atenção: há enunciados que são analíticos mas não de
forma tão óbvia, podem ser analíticos de um modo oculto. Nesse caso, é preciso
saber descobrir ou desvelar sua analiticidade, quer dizer, precisamos tornar
explícito aquilo que está oculto no enunciado.
Para dar um exemplo, vamos analisar a seguinte frase: “todos
os oculistas são médicos da vista”, fazendo de conta que ainda não conhecemos o
significado da palavra oculista. Esta
frase tem a seguinte forma lógica: “todos os assim assim são tais e tais”, uma forma
que, quando aplicada a casos concretos, não garante dá garantia de verdade a
todos os casos: por exemplo, sabemos que não é verdadeiro que “todas as
estrelas sejam luas”. Portanto, o enunciado “todos os oculistas são médicos da
vista” não parece verdadeiro em virtude da forma lógica, quer dizer,
aparentemente não é um enunciado (ou juízo) analítico pois sua forma lógica não
determina sua verdade. Mas imagine,
agora, que, de um momento para o outro, passamos a perceber que há neste
enunciado a intenção de empregar a palavra “oculista” como significando “médico
da vista”. Quando descobrimos este significado da palavra oculista, estamos
autorizados a dizer que o enunciado original “todos os oculistas são médicos da vista” tem o mesmo sentido do
enunciado “todos os médicos da vista são
médicos da vista”. Agora sim, temos um enunciado que é verdadeiro
simplesmente em virtude de sua forma lógica, pois “todo A é igual a A”. Então, temos a garantia de que o primeiro
enunciado é, sim, um enunciado analítico. Isso porque pôde assumir a forma de
uma verdade explicitamente lógica graças ao apelo que fizemos a uma definição,
neste caso, a definição da palavra oculista. Para que fique mais claro: um
enunciado verdadeiro é analítico se, e somente se, for verdadeiro apenas em
virtude da sua forma ou se, mediante uso de definições, puder ser tornado
equivalente a um enunciado que seja verdadeiro em virtude apenas de sua forma
lógica. Um enunciado falso seria analítico se, e somente se, fosse falso apenas
por causa de sua forma lógica ou se pudesse, mediante emprego de definições,
ser transformado em um enunciado que fosse falso apenas por causa da sua forma
lógica. Um enunciado será sintético se, e somente se, não for analítico.
Para Kant, o juízo sintético é o que possui os maiores
problemas para a Filosofia. Sua grande vantagem é a de fazer a ligação entre
conceitos que não se acham relacionados intrinsecamente, não possuem entre si
uma conexão óbvia e conseguem exprimir conjecturas muito importantes a respeito
do mundo. Mas, como ter a certeza de que são verdadeiros se a forma lógica que
possuem não nos dá esta certeza. Quando um juízo sintético tem caráter
empírico, as experiências dos sentidos são capazes de justificar, por exemplo,
o juízo de que “nenhum gato voa”. Já vi gatos e percebi como eles têm corpos
e comportamentos diferentes dos pássaros. É esta experiência que obtive por
meio dos sentidos que me permite emitir o juízo “nenhum gato voa”.
Mas e quanto aos juízos
sintéticos a priori? Em que podemos nos basear para justificar as suas
verdades, já que estes não contam com a experiência sensorial como garantia ou
como fonte de justificação? Aqui, está, segundo Kant, a origem dos mais
profundos problemas filosóficos. O conhecimento
sintético a priori, portanto, não
é justificável pala experiência dos sentidos, já que ele é a priori, ou seja, é um conhecimento que obtemos graças a uma
operação mental, sem precisar recorrer a nenhum dos nossos sentidos. Além disso, esse tipo de conhecimento não é
justificável pela conexão intrínseca dos conceitos que ele utiliza, quer dizer,
os conceitos estão ligados entre si por alguma conexão que está fora destes
mesmos conceitos, uma conexão que não faz parte desses conceitos que se ligaram
e que, além do mais, não
está, necessariamente ou comprovadamente presente no mundo empírico. Esta
conexão pode ser considerada o terceiro elemento que é capaz de tonar o
enunciado verdadeiro ou de justificar o conhecimento. Para Kant, é de grande
importância compreender de que maneira podemos obter o conhecimento sintético a
priori. Segundo ele, é na Matemática que estão os melhores e mais claros exemplos de tais
conhecimentos.