Aula 1 – Filosofia da
Matemática.
Sérgio Augusto Borges
Para nos apresentar uma abordagem filosófica da Matemática,
há estudiosos que começam por uma reflexão acerca do modo como nosso cérebro
(ou nossa mente) “funciona” quando voltamos o raciocínio para a resolução das
questões matemáticas. Esta abordagem tem muito a ver com as diretrizes da
Filosofia Moderna que começou a predominar no século 17 e que tem como duas de
suas principais referências os filósofos René Descartes e John Locke.
Você então se pergunta: por que as diretrizes da Filosofia
Moderna podem ser associadas a uma abordagem filosófica da Matemática? É que a
Filosofia Moderna concentrou suas especulações na Teoria do Conhecimento, que
tenta desvendar as formas de o pensamento pensar sobre de si mesmo, ou seja, os
filósofos modernos foram aqueles que mais pensaram sobre o pensamento. Logo, se
tento elucidar a maneira como a mente “trabalha” ao lidar com as operações matemáticas,
estou usando a própria mente para pensar sobre algo que ela mesma faz.
Apesar de esse tipo de reflexão sobre a mente ter se tornado
a maior preocupação filosófica a partir da Idade Moderna, ele sempre esteve
presente ao longo de toda a história da Filosofia. Desde os filósofos
pré-socráticos, o Conhecimento sempre foi pensado a partir de duas diretrizes
fundamentais, chamadas de Empirismo e Racionalismo. Para os filósofos
empiristas, nosso raciocínio depende de fatos empíricos para comprovar a verdade,
quer dizer, a verdade só é comprovada a partir dos dados que obtemos no contato
com o mundo físico. O tipo de conhecimento obtido por meio dos sentidos é
chamado de conhecimento empírico ou a
posteriori.
Já para os filósofos racionalistas, chegamos à verdade apenas
por meio de operações mentais, as quais seriam totalmente independentes dos
sentidos. Os conhecimentos verdadeiros seriam, então, sempre os conhecimentos a priori. A expressão a priori serve para indicar que nossa
mente, ao utilizar certos procedimentos racionais, é capaz de antecipar
verdades que estão presentes na realidade. Entenda-se “antecipar”, neste caso,
como chegar às verdades antes de qualquer contato sensível que possamos ter as
manifestações das verdades no mundo físico.
Estas duas formas de pensar sobre o pensamento verdadeiro (a
dos racionalistas e a dos empiristas) também servem de referência para a
Filosofia da Matemática, mas isso não quer dizer que os filósofos da matemática
concordem plenamente com essa dicotomia. O filósofo da matemática norte-americano,
Stephen Barker, por exemplo, considera superadas estas duas formas de pensar o
pensamento. Para ele, empirismo e racionalismo têm uma concepção mecânica do
funcionamento da mente humana, seriam psicologismos.
Barker nos dá um exemplo que, segundo ele, evidencia o quanto
é obscura a diferença entre conhecimentos empíricos (ou a posteriori) e a priori, que
é o tipo de conhecimento verdadeiro exigido pelos racionalistas:
Barker nos conta que, para diversos filósofos, a ideia de vermelhidão
poderia ser abstraída pela mente depois do contato sensorial de nosso corpo com
uma multiplicidade de objeto vermelhos. Não poderíamos, porém, abstrair a ideia
de virtude quando contemplamos atitudes que seriam virtuosas. Para Barker, essa
forma de pensar baseia-se na “abstração”, uma teoria frágil por não esclarecer
ao certo quais conhecimentos podemos e quais não podemos abstrair a partir do
que é “dado” na experiência sensorial. Afinal, por que cargas d’água a ideia de
vermelhidão poderia ser abstraída do contato visual com os diversos tons de
vermelho mas a ideia de virtude não poderia ser abstraída das experiências de
virtude que podemos ter ao vivenciar ou observar atitudes virtuosas?
Por isso, a Filosofia da Matemática deve, primeiro, fazer uma
distinção mais precisa entre os conhecimentos empírico e a priori. O conhecimento empírico é aquele que requer justificação
da experiência. Portanto, não podemos apenas acreditar ou crer em algo e considerar essa crença um conhecimento. Por
exemplo: não posso saber que os corvos são pretos apenas entendendo o
significado da frase “os corvos são pretos”. Crenças, mesmo quando verdadeiras,
não são conhecimentos se lhe faltam justificações. Preciso, portanto, possuir
evidências empíricas para afirmar que algo é verdadeiro, ou seja, preciso ter
visto inúmeros corvos ou penas deles ou ouvido alguém falar sobre eles para
afirmar que corvos são, de fato, pretos. O conhecimento empírico, portanto tem
sua justificação em dados empíricos, dados que são captados por nossos sentidos.
Se não tenho nenhuma evidência observacional sobre os corvos, é falso dizer que
sei que eles são pretos.
A influência da experiência é diversa em outros tipos de
conhecimento. O conhecimento de que “os corvos são aves”, por exemplo, é
entendido pelos filósofos como sendo a
priori. Isso porque ninguém precisa ter examinado corvos de forma direta ou
indireta para dizer que sabe que eles são aves, assim como não é preciso ter
feito experimentos físicos para saber que moléculas de hidrogênio são moléculas
ou que haverá tempestade amanhã, se vier um tufão. São casos em que a única
experiência necessária é aquela que habilita uma pessoa a entender as palavras
em que o conhecimento se exprime. Se entendo o significado da palavra corvo,
sei que, inerente a ele, está o conceito de ave, quer dizer, um corvo,
necessariamente, é uma ave e não um réptil ou mamífero. Em resumo, conhecimento a priori é aquele que não precisa ser justificado pela experiência.
Para tornarmos mais precisas as distinções entre conhecimento
empírico e conhecimento a priori,
vamos agora apresentar a distinção entre dois tipos de raciocínio: o raciocínio
dedutivo e o raciocínio indutivo. O
dedutivo relaciona-se mais ao conhecimento a priori, vejamos por quê. Na dedução, pode-se saber a priori que, não havendo erro lógico e
desde que as premissas sejam verdadeiras, a conclusão também terá de ser
verdadeira. Vejamos o exemplo de uma forma lógica que faz com que seja válido
um argumento dedutivo:
“Todo $$$ é
///; Nenhum *** é ///; Logo, nenhum *** é $$$.
Pode-se saber, a priori,
que, sendo verdadeiras as duas primeiras frases, ou seja, as premissas, a
conclusão terá de ser verdadeira. O argumento é válido por causa de sua forma
lógica, mas sabemos que tais fórmulas não são condição suficiente para que
todas as conclusões sejam verdadeiras ou plausíveis. Seria a fórmula lógica do exemplo acima e outras consideradas tão
verdadeiras como ela, inerentes ao nosso raciocínio? Seriam formas “impressas”
em nossa mente e, por isso mesmo, formas a
priori de conhecimento? Ou seriam apenas algumas formas possíveis de se
raciocinar, adotadas por nós, humanos, apenas por terem, ao longo de milhares
de anos, dado prova de eficiência a favor de uma nossa melhor adaptação ao
mundo em que vivemos? Haveriam outros mundos onde as mesmas formas lógicas não
funcionariam tão bem e teríamos que nos utilizar de outras que mais nos
conviessem?
A reflexão acima especula sobre a possibilidade de o
raciocínio dedutivo, relacionado ao conhecimento a priori, não ser assim tão independente e distante da realidade
concreta do mundo físico que nos rodeia com suas qualidades sensoriais específicas
as quais, tradicionalmente, são apenas relacionadas ao conhecimento empírico.
O raciocínio indutivo,
por sua vez, sempre associado ao conhecimento empírico, também abre margem para
conclusões não totalmente justificadas pelos sentidos. A conclusão obtida sempre expressa uma
conjectura empírica muito mais ampla do que a que é expressa pelos dados. Não
se pode, portanto, saber, a priori, que a conclusão terá de ser verdadeira se
os dados forem verdadeiros. Um exemplo: imagine que eu tenha observado muitos
corvos, constatando que todos eram pretos. Posso, então, raciocinando
indutivamente dizer que muito provavelmente todos os corvos são pretos. A
verdade dos meus dados não constitui garantia a priori para a conclusão de que
todos os corvos devam ser pretos, sejam aqueles hoje vivos, os que já nasceram
e morreram e os que estão por nascer no futuro. Na melhor das hipóteses, o que
se pode é dizer que os dados apoiam e confirmam a conclusão, sem garantir a sua
verdade. Assim, posso dizer que o raciocínio indutivo tem um quê de dedução,
uma vez que deduz uma verdade mesmo sendo impossível a verificação empírica de
todos os corvos em qualquer tempo e lugar.
Feito este esclarecimento sobre conhecimentos empíricos e a
priori podemos, então, partir para uma importante questão filosófica pertinente
à Matemática: seria esta ciência uma semelhante à Física, cujos conhecimentos
baseiam-se em dados obtidos por meio da experiência que temos do mundo físico?
Ou seria como a Lógica, preocupada em verificar a validade das regras que
organizam o pensamento para melhor relacionar o pensamento com a realidade? A conclusão a que parece chegar o filósofo
Stephen Francis Barker é a de que, partindo das tradicionais concepções de
conhecimento a priori e empírico, não fica afastada a
possibilidade de existirem conhecimentos empíricos que não sejam exclusivamente
traduzíveis em termos de conceitos empíricos, assim como não fica afastada a
possibilidade de existirem conhecimentos a
priori que não sejam exclusivamente traduzíveis em termos de conceitos a priori. A Matemática seria, então, uma ciência que estaria
em uma região de fronteira entre estas duas formas de conhecimento: manteria
relações com a realidade empírica mesmo sem utilizar-se de dados empíricos
obtidos em nossa relação imediata com o mundo, ao mesmo tempo em que extrai de
dados empíricos deduções que não poderiam ser de todo comprovadas por se
referirem não só a objetos existentes, mas também aos que já existiram ou ainda
existirão.
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