quarta-feira, 26 de novembro de 2014

FILOSOFIA DA NATUREZA.

QUATRO MOMENTOS DA 
 FILOSOFIA DA NATUREZA







Este texto é um resumo das quatro principais perspectivas filosóficas sobre a natureza desde Platão e Aristóteles: a defendida por estes dois filósofos gregos e as concepções dominantes na Idade Média, na Idade Moderna a partir de René Descartes, e no mundo contemporâneo, em que se destacam críticas à modernidade e uma renovadora visão da ética atrelada à natureza.

Na Antiguidade, a natureza era considerada a dimensão totalizadora da realidade, a realidade suprema que a tudo abrangia: tanto a ordem do mundo sensível quanto as  dimensões humanas da Ética e da Política. Para Aristóteles, a natureza possuía o telos para o qual tudo se direcionava, o sentido último de tudo que existe. Os valores morais, portanto, deveriam se orientar pelo Bem indissociável da natureza e capaz de guiar nossas ações.

Essa perspectiva foi esvaziada a partir da Idade Média, quando passou a vigorar como hegemônica a doutrina cristã. Este esvaziamento da natureza como portadora do “telos” de tudo deveu-se ao fato de a filosofia cristã colocar Deus como o fim supremo a que tudo se destina, instância do Bem por excelência que a tudo orienta e atrai, sendo Ele, portanto, o princípio que norteia a conduta humana na via da perfeição. A natureza seria, para Santo Agostinho, não mais que um espelho a refletir o espírito divino mas que não ofereceria o caminho mais seguro até Deus. Este caminho deveria ser encontrado na alma humana, já que o homem foi criado à imagem e semelhança de seu Criador. Esta desvalorização da natureza acabou por provocar o abandono das pesquisas empíricas ligadas aos fenômenos naturais.

Na Idade Moderna, principalmente a partir de René Descartes, teve início o processo de dessacralização da natureza, que passou a ser vista como objeto a ser explorado pelo sujeito posto à parte dela. Cabe ao sujeito do conhecimento encontrar os métodos mais eficientes para manipular a realidade material. 

Assim, a natureza vai deixando de ser pensada filosoficamente para ser considerada instrumentalmente. Para os filósofos modernos, a natureza poderia ser comparada a um relógio, a um mecanismo que funciona com precisão, cabendo ao homem desvendar todas as formas de interação (e seus desdobramentos) das partículas invisíveis e indivisíveis que compõem o cosmos.

A natureza é tomada como sendo indiferente às questões humanas, como máquina isenta de valores éticos e morais. Com relação à Ética, a solução de Descartes foi criar uma moral provisória para lidar com as situações em que decisões imediatas se apresentavam necessárias. Como o filósofo não se aprofundou no desenvolvimento de sua teoria moral, o que prevaleceu foi sua abordagem teórica do conhecimento a qual veio a se tornar uma espécie de metafísica artificial.

Os desdobramentos da concepção moderna de natureza levaram filósofos e cientistas da contemporaneidade a uma crítica radical deste modelo. Para eles, as consequências dramáticas da modernidade não são apenas parte de roteiros de cinema mas se fazem presentes em nosso cotidiano. Catástrofes e acidentes ambientais são vistos por uma perspectiva política, como resultado da contínua ação exploratória que visa apenas o lucro.

Por isso, no mundo contemporâneo, tem se desenvolvido uma nova ética que serve de contraponto à concepção moderna de natureza. Uma ética que, em vez de oferecer princípios para serem aplicados à vida, toma a própria vida como princípio fundamental de sua constituição. Além disso, a própria ciência vai, aos poucos, evoluindo no sentido de abandonar uma lógica determinista em favor de uma visão que se aproxima mais da imponderabilidade dos fenômenos ligados à natureza.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

ZYGMUNT BAUMAN - ÉTICA PÓS-MODERNA.

 Ética pós-moderna 



















QUESTÕES DE MORALIDADE E UNIVERSALIDADE EM ZYGMUNT BAUMAN

Sérgio Augusto Borges



Resumo: este trabalho mostra alguns dos pontos mais importantes das reflexões de Zygmunt Bauman a respeito da Ética na era moderna e na pós-modernidade. Nos últimos cinco séculos, nos deparamos com diversas tentativas de se chegar a concepções éticas universais que foram sintetizadas em códigos provados como falhos e incompletos. A tão propalada universalidade de leis morais revelou-se sempre precária e logo à primeira vista, apenas pelo fato de existirem vários códigos com a mesma pretensão: ser universal. Para Bauman, a alternativa que se abre para a definição de parâmetros éticos na pós-modernidade é a de uma corajosa valorização dos sentimentos e impulsos morais comuns a toda pessoa humana. Nestes residiriam a base da verdadeira universalidade ética e não em códigos que se   autoproclamam universais mas com universalidade circunscrita a fronteiras estatais, fato que, por si só, anula qualquer pretensão ao universal. 

Palavras-chave:  ética, pós-modernidade, universalidade, moralidade

Abstract: this paper shows some of the most important points of the reflections of Zygmunt Bauman about ethics in the modern era and in post-modernity. In the last five centuries, we have faced several attempts to reach universal ethical views that were synthesized in codes as proven flawed and incomplete. The much-touted universal moral laws proved to be always precarious and at first sight, just because there are several codes with the same intention: to be universal. For Bauman , the alternative that opens to the definition of ethical standards in postmodernity is a bold enhancement of feelings and moral impulses common to every human person . These reside the basis of true universality and ethics codes not in self-proclaimed universal but with universality limited to state borders, a fact which in itself invalidate any claim to the universal.

Keywords: ethics, post- modernity, universality, morality


Perspectivas moderna e pós-moderna de moralidade.

A problemática da moralidade começou a tomar suas feições atuais no início da era moderna, quando o indivíduo passou a se firmar como autônomo para sua própria autoconstituição. Até então, as normas de conduta sociais eram apresentadas como se fossem de origem divina. Na perspectiva de tais sociedades tradicionais, não havia espaço para contradições entre o que era dado como certo e o que era tido como errado. A lógica que imperava era a lógica da disjunção “ou/ou”. A escolha de caráter pessoal, independente dos valores em voga, era tomada como  desviante, uma vez que a escolha correta já nos era dada por Deus. Liberdade humana, portanto, assumia um caráter de erro desafiante dos costumes.  O que se afastava do certo – modos e meios de vida estabelecidos por Deus – só podia ser errado, transgressor, pecaminoso.Para fazer valer as normas sociais, a sociedade contava com mecanismos extremos de administração da conduta individual, entre eles uma inflexível e onipresente vigilância coletiva.

Com o afrouxamento da força da tradição, aliviou-se o peso das imposições morais ditas divinas. Foi uma consequência do contexto histórico que favoreceu uma crescente pluralidade de situações mutuamente autônomas para homens e mulheres. O progressivo centramento das decisões na esfera do indivíduo abalou as rígidas concepções da ética tradicional pois fez aflorar a infinidade de interesses e de concepções de mundo. A lógica “ou/ou” passou a não ter mais sentido, visto que o Bem passou a apresentar uma face contraditoriamente caleidoscópica, no sentido de que o belo poderia não ser o verdadeiro, o agradável poderia também ser o falso, o útil poderia não ser bom. Abriu-se, desta forma, ao indivíduo, um horizonte de escolhas em que era preciso adotar critérios estritamente pessoais para a tomada de decisões. Tornou-se necessária, para cada um, a constituição da própria identidade por meio do processo contínuo de tomada de decisões. A complexidade do mundo moderno se apresenta na forma de ações que a pessoa precisa escolher, ações que escolheu dentre outras que poderia escolher mas não o fez. Por isso, é imprescindível calcular, medir, avaliar.

Assim, cai por terra o tipo de lógica que apresentava uma das vias de conduta moral como estritamente certa, a que seria garantidora o bem enquanto outras, também possíveis, deveriam ser descartadas por nos conduzirem fatalmente ao erro. Mas, apesar dos caminhos abertos para a auto-escolha individual, o homem moderno parece ter se sentido órfão de uma ética uniabarcante, que estruturasse a sociedade dando-lhe sentido moral coletivo apesar dos caminhos abertos para as individualidades. Uma solução seria voltar atrás ressuscitando um novo credo religioso, outra seria estimular uma ideia não-religiosa mas convincente o bastante para compreender o todo social. A grande dificuldade era que a nova sociedade já se estruturara com homens e mulheres com vidas fragmentadas, separadas em muitas metas e funções soltamente relacionadas. Num mundo assim esparso, dividido, como esperar o sucesso de uma ideia que se pretendia “onicompreensiva” que promovesse uma visão unitária? O dilema levou legisladores e pensadores modernos a tratar a moralidade como algo que precisa ser planejado e enxertado na conduta humana, não como um “traço natural” do homem. Por isso, tentaram compor e impor uma ética como um sistema coeso de regras morais transmitidas por meio de ensinamentos para posterior cobrança e obediência.

As inúmeras tentativas de substituição da crença pela razão não lograram êxito.  Os códigos planejados por filósofos continham, implícita em suas fórmulas, a velha desconfiança de que a liberdade de escolha sempre se dirige para o erro, de que, sem vigilância, os homens tendem à degeneração e à  corrupção moral. A desconfiança fazia, então, com que a liberdade tivesse que ser contida e até reprimida por ser considerada fonte de instabilidade. Era preciso criar mecanismos de recompensa e de punição para que os indivíduos chegassem, sob cálculo, à conclusão de que lhes valeria a pena seguir o caminho da moralidade estabelecida para satisfazer os próprios interesses.

Mas como seria possível o êxito de códigos que desqualificam a potência primordial da conduta moral, qual seja, a autonomia de escolha, já que tais códigos  apontam para a estruturação de uma moral heterônoma, com normas impostas de fora pra dentro, sob coação, por uma administração racional?A resposta dos filósofos modernos foi considerar esta uma  aporia apenas temporária, apenas um resto de não-razão, nada que não pudesse ser resolvido no decorrer do “progresso da humanidade”. Afinal, a modernidade se caracteriza, justamente, pela solução de conflitos, ou seja, todos os conflitos têm soluções possíveis que estão à espera de serem encontradas. Por isso, duas “bandeiras gêmeas” se impuseram para filósofos e legisladores do mundo moderno: universalidade e fundamentação. As duas bandeiras foram erguidas com a pressuposição de que boas regras são aquelas artificialmente planejadas. Para os legisladores, esses ideais de universalidade e fundamentação seriam atingidos por meio da coação que levaria à uniformização dos valores e práticas sociais. Para os filósofos, fundamentos epistemológicos seriam capazes de construir modelos de natureza humana universal: criam que haveria de haver prescrições éticas reconhecíveis por toda criatura humana só pelo fato de serem criaturas humanas. Assim, os filósofos ajudaram a construir o sujeito do estado como a síntese do destino humano.

“O pensamento e a prática morais da modernidade estavam animados pela crença na possibilidade de um código ético não-ambivalente e não-aporético”. Para ZigmuntBauman, o pós-moderno é a descrença nessa possibilidadepois “uma moralidade não-aporética, não ambivalente, uma ética universal e objetivamente fundamentada talvez seja uma impossibilidade, uma contradição nos termos”.

Responsabilidades morais e normas éticas.

À deslegitimação das instâncias garantidoras dos códigos de conduta das sociedades tradicionais, seguiu-se um certo vácuo de normas que pudessem se legitimar como aquelas que visam o bem comum. Esta ausência foi como que uma semente de fruto amargo deixada no solo em que se plantou a modernidade, qual seja, o solo da individuação em que, ao sujeito, é designada maior autonomia para tomada de decisões.

A liberdade para escolhas individuais com base em critérios definidos por conta própria no lugar da sujeição a padrões de conduta assumidos de forma heterônoma, pode até ter sido saudada por intelectuais renascentistas como um desatar de condicionamentos que estagnavam a sociedade fazendo, por exemplo, com que a mera circunstância de nascimento fosse fator determinante definitivo e irrevogável.

No entanto, a carência de normas gerais explicitamente assumidas por todos gerou insegurança e instabilidade na convivência entre sujeitos que deveriam fazer parte do todo incipiente da nova ordem burguesa. A tal semente feita de ausência gerou a crise ética que se estendeu ao longo de toda a era moderna. Crise que se tentou superar com elaborações constantes de códigos éticos que tinham em comum a pretensão de dar conta da totalidade da convivência humana.
 Os sucessivos fracassos parecem ter acentuado em vez de refreado a obsessão por leis uniabarcantes. Obsessão que os óculos da modernidade faziam ser chamada de otimismo. Justo nome na visão de quem havia experimentado diversos triunfos da razão por conta da evolução da ciência. O sucesso, portanto, era uma questão de tempo, pois este sempre nos leva ao aperfeiçoamento. Assim justificou-se a crença na possibilidade de um futuro conjunto sistêmico de leis morais que visem ao bem de todos e de cada um.

Um passo mais sofisticado nessa busca por uma totalidade sistêmica no campo da moral foram as teorias epistemológicas que pretenderam evidenciar alguns princípios universais constitutivos da razão   humana. Princípios que devem, necessariamente, ser levados em conta na definiçãode quaisquer normas de convivência.  Tais teorias epistemológicas não foram o bastante para evitar novos insucessos de códigos pretensamente uniabarcantes. Sérios obstáculos se impuseram à teoria de Immanuel Kant que nos deixou como legado a defesa da autonomia do sujeito considerado por ele capaz de definir por si mesmo suas as próprias leis de conduta com base em princípios racionais que podem ser compartilhados por todos os seres humanos. O filósofo de Königsberg talvez já intuísse que a “minoridade” dos sujeitos causada pela imposição de códigos morais, em vez da adoção voluntária de leis universais pelos indivíduos, pudesse ser a principal causa das fracassadas regulamentações.

Para Zygmunt Bauman, um dos maiores obstáculos à autonomia dos sujeitos pretendida por Kant sempre foi a desconfiança nos “eus reais”, desconfiança que persistiu como nódoa na tão cultuada racionalidade do mundo moderno. Afinal, não é a razão um bem compartilhado por todos os seres humanos, sem exceção? Se todos somos capazes de pensar e de certificar-nos, por conta própria, que o bem que interessa a cada um é o bem que deve interessar a todos, por que então duvidar que homens e mulheres deixarão de fazer escolhas individuais de acordo com normas voltadas para o bem comum? A origem desta contradição, para Bauman, tem a ver com a própria maneira de ser da autêntica moralidade, que tem na ambiguidade sua principal marca. Uma condição que, de acordo com o sociólogo, foi ignorada por legisladores e filósofos por estes sempre temerem o que é de difícil ou mesmo de impossível compreensão por meio de teorias. Para eles, o que é inconstante, imprevisível, imponderável, deve ser forçosamente envolvido por códigos de conduta que orientem as ações.

Então, a moralidade oficial precisa equilibrar-se o quanto for possível em um sistema de punições e recompensas que faz com que a liberdade de cada um seja direcionada para fazer escolhas planejadas, calculadas, mediadas pelo amor próprio e pela razão para se evitar o que é mal e atingir o bem para si. Produz-se, então, uma cadeia de ações que fogem à moralidade, pois esta não pode ser feita de ações por interesses.

Para Zigmunt Bauman, a ética pós-moderna é aquela que abandonou a ilusão da universalidade para leis morais e assume que é a competência moral de seus membros que torna possível a existência contínua e o bem estar da sociedade. Segundo Bauman,  sujeitos capazes de decisões próprias sem serem coagidos por um sistema de normas elaboradas por legisladores que contam com a força para fazê-las cumprir, são sujeitos que desenvolvem o senso de responsabilidade necessário para lidar com situações que exigem consenso. 


O que Bauman chama de repersonalização da moralidade começa com a valorização do fato da “intimidade moral”, que ele compara ao cogito cartesiano como última instância do sujeito a qual é impossível negar. É na intimidade moral que residem os impulsos morais e as emoções, matérias-primas com as quais se faz a autêntica moralidade da convivência humana. Autêntica porque autotélica e indiferente a propósitos e utilidades. É neste estado bruto da moralidade, tão temido por legisladores e filósofos, que podemos encontrar o sedimento capaz de fazer com que a razão de ser da sociedade se manifeste a todos os seus membros. Se é de cada um de nós que partem os sentimentos que são acolhidos em uma cadeia intersubjetiva de interpretações, podemos nos sentir como bases de sustentação da sociedade e, como tais, moralmente responsáveis em vez de meros cumpridores de normas. Em vez disso, a insistência em modelos de sociedade que não promovem a responsabilidade individual acaba por aumentar as chances de ocorrer o que mais se teme: o triunfo da imoralidade. Isso porque leis coercitivas partem da pressuposição de que todos não são confiáveis e devem ser submetidos à coação moral. Ficam, então, isentos de responsabilidade e, em consequência, incompetentes para tomada de decisões morais. Essa incapacidade faz com que, em momentos de crise, os sujeitos aceitem com facilidade sistemas opressivos de governo que apresentados como solução. 

A universalidade ilusória

A moralidade autêntica não é instância que se submete a moldes ou manipulações por parte de poderes instituidores de códigos éticos. Escapa, como água por entre os dedos, a toda tentativa de determinação forçada. No entanto, o homem parece não estar disposto a abrir mão das tentativas de encontrar o código ético por excelência, que, julgando-se expressão definitiva de nossa natureza, poria fim a todos os dilemas morais. Esta foi a busca implementada pela modernidade, na qual caminhamos com passos por sobre tábuas de salvação de novos códigos, abandonadas uma após a outra tão logo percebemos que a água já encobre nossos pés.

Mais do que ninguém, os filósofos sabem da condição relativa dos códigos éticos, os quais não escapam da temporalidade histórica. É por isso que, para Zygmunt Bauman, as imagens de bem e de mal que partilhamos não duram mais do que o tempo do consenso que nos permite alguma estabilidade social, algum sentido de conjunto temporário. Para homens e mulheres absorvidos em suas tarefas cotidianas, é provável que não haja paralisantes inquietações quanto ao que devem ou não fazer. Parecem satisfazer-se em agir conforme aquilo que o grupo espera de cada um, tendo a garantia de que fazem o que é aprovado pelas pessoas que compartilham daquele mesmo espaço e “momento histórico de eticidade”. É algo que tranquiliza a consciência saber que os “iguais a nós” teriam feito o mesmo ou quase o mesmo que fizemos, tendo à disposição a mesma reduzida escala de graus de uma mesma opção.

A tranquilidade da consciência, portanto, é grande devedora da sensação ou crença da universalidade das normas morais em vigor. Por isso, inquietações sempre hão de sobrar para filósofos encarregados da manutenção de tal crença, uma vez que a ela é que se vincula a obediência da maioria. Convencida por filósofos quanto à universalidade das normas, as pessoas dificilmente se questionam quanto à relatividade das mesmas, pois desconhecem que outras pessoas em outros tempos e lugares, portadoras de noções distintas das fronteiras entre o bem e o mal, tomariam decisões inteiramente diferentes das suas. Mas esse desconhecimento não diminui a necessidade de que o poder de persuasão dos filósofos seja forte o bastante para estar à altura da carga de incertezas, ansiedades e medos de homens e mulheres quanto ao futuro. São sentimentos e emoções capazes de fazer emergir a crise dos valores ao escoar a credibilidade de códigos construídos e mantidos por artifícios de retórica e da força.

A necessidade de grandes esforços retóricos deriva, em muito, da incapacidade em lidar de forma tranquila com a diversidade de formas de se encarar o bem e o mal. Segundo Bauman, poucos autores foram como Montaigne que escreveu sobre isso de forma resignada e equânime. As diferenças, na maioria dos casos, são vistas com horror, como supremo absurdo a desafiar o pensador pela permanente ameaça que representa às conquistas do mundo civilizado. A saída para o dilema da diversidade de concepções sobre bem e mal, tem sido quase sempre a mesma: afirmar a verdade como sendo única por definição e, por consequência, também a retidão e os preceitos morais. É preciso, portanto, afirmar com todas as letras que outras normas são não apenas diferentes mas também erradas e más e que são aceitas apenas por ignorância, imaturidade ou  por má-vontade, acusações que servem de escada pela qual se eleva a autoridade das normas morais defendidas.
Além da negativação das normas alheias, os defensores da moralidade que se sabe apenas mais uma entre tantas, precisam, é claro, embasar seus argumentos em alguma forma de positividade. O mais usual tem sido atribuir às normas que defendem uma superioridade que seria garantida pelo estágio evolutivo presente, ponto de culminância do processo constante de aperfeiçoamento da humanidade ao longo do tempo. Dessa forma, temporaliza-setoda e qualquer alteridade feita pelo homem, inclusive a alteridade ética. Tudo o que dentro das normas em uso se apresenta como contraditório, dissonante, ou que não responde adequadamente aos desafios e necessidades históricas é considerado mero obstáculo passageiro, algo a que a evolução saberá dar conta. A temporalização atesta ainda que outras formas de moralidade são como relíquias que dilataram seu tempo, sendo praticadas por quem já está de fato morto, como cadáver insepulto que permanece inconvenientemente instalado na ante-sala da era moderna.

A maneira de lidar com qualquer presença de contundente negação da norma é o menosprezo. Por esta via, tudo que ameaça os princípios de coerência e congruência, marca profissional dos filósofos, é tomado como pura aberração. Claro que, para ter a anuência das pessoas quanto a isso, é preciso que estes mesmos princípios da lógica filosófica  tenham sido incutidos  nas mentes dos que estiverem sob a jurisdição da norma ou mesmo que neles já estejam projetados os interesses de poderosos locais. Poderosos que, para defenderem suas próprias ambições, usam como embuste bandeiras universalistas.  A difusão das formas de raciocínio coerente é tarefa preponderante de todo filósofo comprometido com a justificação das normas pois trata-se de uma forma de pensar que tende à previsibilidade, característica comportamental valiosa para todo e qualquer governante que exerce o poder em nome de sua própria vontade.

A crença dos arautos da modernidade de que possuíam uma ordem moral superior e mais avançada no tempo transformou-se em sólida convicção, passando a ser usada como justificativa para nações-estado imporem-se sobre outras. Afirmavam ser impulsionadas pela causa enobrecedora de fazer a civilização espalhar-se pelo globo. A alteridade cultural projetada sobre a seta do tempo, forjava a visão do outro como estagnado no passado, sempre associado ao que ainda não evoluiu ou aperfeiçoou-se. A estas relíquias incongruentes destinadas à extinção, a história não reserva outra saída a não ser a subordinação àqueles capazes de difundir o conhecimento que leva à mudança para o melhor.

As inquietações do universalismo.

Como discurso moldado para legitimar o poder estatal, o universalismo encontrou adversários postos tanto como força centrípeta de implosão, como força centrífuga de dissolução de sua vontade. Como representante da primeira, uma coleção heterogênea de paroquianos, parentes e outros habitantes locais; como agenciadores da segunda, filósofos de boa-fé para quem o autêntico postulado da universalidade põe abaixo não só as atribuições morais de comunidades locais, transformadas em unidades administrativas da nação-estado, como também a autoridade moral reivindicada pelo estado. Foram adversários que se postaram contra todo e qualquer projeto universalizante que revelasse as ambições convenientemente uniformizantes para estado moderno

Para os comunais, a prática moderna de universalização manifestou-se como força de opressão, ato de violência praticado contra a liberdade humana, ultraje e ofensa esmagadora de culturas estabelecidas por sucessivas gerações. Seus costumes locais foram ridicularizados e relegados ao plano das superstições que resistiam ao poder centralizador, tendo que, por isso, ser condenadas à morte.  Ligadas que estavam ao tempo e ao território, as culturas localizadas foram envergadas por duros golpes de espada de certos princípios universais que exigem que normas morais passem pelo crivo da extratemporalidade e da extraterritorialidade.

O golpe, no entanto, produziu também estragos no mesmo ponto de onde partiu. Ao mesmo tempo em que se impunha por meio da honrosa alegação de alojar-se no cerne da natureza humana, o código moral estatal desmascarava-se a si mesmo ao limitar sua abrangência aos territórios sujeitos a determinada influência política ou reivindicados por esta. Pregava, portanto, uma universalidade natimorta pelo fato de circunscrever-se às fronteiras da nação-estado, contradição de origem que se revela como expressão de interesses apenas diversos dos interesses de lideranças locais. Afinal, a parcialidade implícita em códigos com validades delimitadas por fronteiras os exclui por completo da qualidade de universais. Que argumentos, então, poderiam ser usados para fazer com que membros de comunidades locais adquirissem visão mais ampla e facilitadora da substituição de um código moral por outro?  Como convencê-los a elevar seu ponto de vista a um plano superior e mais abrangente, imparcial, crítico de costumes enraizados e livre de pressões comunais. Por que deveriam desatrelar-se de lealdades e particularismos comunais e aceitar a submissão ao modelo de cidadania arquitetado pelo estado? 

Também para os universalistas de boa-fé, as práticas universalizantes dos estados são inaceitáveis. Para eles, é nulo o princípio aristotélico da política como instância primeira de gestação do humano. O autêntico postulado da universalidade, portanto, destoa de toda e qualquer comunidade política autodeterminada, seja ela de âmbito local ou nacional. A exigência universalista é sempre direcionada contra a polis, uma vez que esta, como recurso de autoafirmação, sempre defende a particularidade de seus membros em relação aos membros de outras polis. O outro, a alteridade localizada além das próprias fronteiras, contrapõe-se ao eu “situado” que se julga membro da comunidade cuja moral seria a universalmente válida, uma oposição capaz de suscitar intolerâncias recíprocas. Para os universalistas mais exigentes, a moralidade verdadeira se radica apenas em qualidades e capacidades possuídas por indivíduos enquanto pessoas humanas. O que for contrário a isso não passa de falso código moral, proclamado por poderes bem mais estreitos que o universal. Consideram códigos morais surgidos de interesses grupais ou em nome de “suprema sabedoria grupal” como instâncias de conspiração entre caudilhos atacados de ganância pelo poder.

Pregam os filósofos de boa fé que um poder, para ser universalista de fato, deve ser capaz de identificar a população que está (ou que pode vir a estar) sob sua administração com a espécie humana em sua totalidade.  Porém, uma tal perspectiva de condução do poder tem pouquíssima probabilidade de ser levada a cabo num mundo em que as agências que promovem o universalismo não detém uma soberania que seja verdadeiramente universal. Na realidade desenhada pelo mundo moderno ainda em vigor, as fronteiras dos estados é que delimitam o horizonte universalista. Com isso, o forma-se um emaranhado de autoridades que se consideram detentoras de padrões universais de moralidade, diversidade de posições que põe sob suspeita o valor de cada uma das ditas universalidades. 

Neste cenário de “universalidades” circunscritas a diferentes domínios limitados por fronteiras entre vizinhos, cria-se a solidariedade entre os governantes, o que possibilita que cada um deles, reconhecendo os demais como soberanos e respeitando os limites territoriais das jurisdições, governe de acordo com as leis proclamadas em seu território. É esta solidariedade que serve de base para a formação de um novo modelo de normas morais que possibilita a convivência entre as nações e entre os povos. Segundo Bauman, a exemplo do ocorrido no interior de cada estado, as normas morais supra-estatais também são promulgadas segundo o padrão da lei universal mas acabam por assemelhar-se a normas de relações internacionais. Tornam-se, portanto, um arrazoado de diplomacia, barganhas e busca de “pontos de consenso” genuínos ou fictícios. No final das contas, a universalidade supra-estatal acaba por ter pouco de raízes comuns e muito de denominador comum. Não há como esconder a evidência de que existem várias concepções de moralidade universal e que somente a superioridade da força de um dos poderes permite que sua concepção prevaleça sobre as outras.

Para Zygmunt Bauman, códigos de moralidade supranacionais são mais uma forma de conceituação processual de universalização, um tipo de conceituação que serve de último abrigo ao sonho de universalidade como destino último da espécie humana. Foi este o abrigo que ofereceu segurança à afirmação de que a “marcha do tempo” nos levará, irremediavelmente, à universalização: confiança tão grande no futuro como portador do remédio para todos os males, que é capaz de toldar os olhos para a realidade das contradições que se apresentam no projeto universalista moderno. Não foi à toa que Diderot nos chamou a atenção para a enorme crença que o homem moderno depositou nos tempos que estão por vir, atribuindo a estes a capacidade de corrigir todas as injustiças do presente e considerando-os como estuários de um movimento que caracteriza a própria humanidade, o movimento das qualidades que desafiam cada um dos seres humanos. Foi uma confiança que se alimentou da imaginação e da fantasia, forças humanas capazes de se espalhar livremente no campo fértil do porvir sem terem que se incomodar com  experimentações empíricas.

Coube à fase pós-moderna a destruição de toda essa crença que se tornou característica fundamental da era moderna. Na pós-modernidade, o que se apresenta dentro do contexto da historiosofia da universalização é a chamada globalização. Esta, no entanto, não envolve a busca de unidade entre as autoridades políticas, culturais e morais. Os fatores que se supõem “globalizar” são considerados mais não-nacionais que inter- ou supra-nacionais, fatores como a difusão global da informação, da tecnologia e interdependência.

A ideia de moralidade universal, depois de despedir-se da fundamentação na “missão civilizadora” das nações-estados que se proclamavam mais desenvolvidas ou mais avançadas culturalmente, se é que deva sobreviver, só pode ter como pontos de apoio em fatores que são inerentes à espécie humana: os impulsos morais e pré-sociais, anteriores, portanto, a todo e qualquer resultado comum ao processamento social, produtos derivados de ações legisladora, ordenadora e educadora.

No campo de batalha em que nos deparamos com pluralidade nova ou renovada de desafios morais, estão à espreita os comunitários, adversários dos pregadores do universalismo e que oferecem como alternativa um já familiar refúgio cômodo e acolhedor da “comunidade nativa”.  Esta é a alternativa que resta aos universalistas que sucumbirem na batalha ao aceitarem como eterno e irremediável fato a persistência da pluralidade de soberanias políticas e econômicas. Uma aceitação que pode ser considerada como posição conformista e contrária à persistência na promoção de uma moralidade distante de determinações grupais ou estatais mas ligada à totalidade da espécie humana, posição que exige forte resistência por estar ancorada no território frio e abstrato dos valores morais universais.   

Considerações finais.

No campo de batalha em que se trava a luta por hegemonias de concepções morais, os defensores de uma moralidade que se ancora na pessoa humana têm como adversários tanto os grupos chamados comunais, defensores do eu “situado”, como as organizações políticas estatais. Ambos são portadores de concepções destrutivas do universalismo proclamado pelos filósofos de boa-fé: os comunais porque o tomam como ultrajante violação de direitos, veículo de opressão e de violência contra a liberdade; as organizações políticas estatais porque restringem e congelam a perspectiva universalizante no interior das fronteiras nacionais para atender a interesses políticos. Ao contrário do que é pregado pelos universalistas, as nações-estado particularizam seus membros frente aos de outras nações, propagando entre seus indivíduos a crença em sua unidade e semelhança que os opõe aos estrangeiros, tomados como outros diferentemente situados por estarem enraizados em outras polis.

Segundo Bauman, a alternativa restante para os universalistas de boa-fé é, em primeiro lugar, o não conformismo em relação às crenças que consideram irremediável e sem fim a existência de pluralidades de soberanias políticas e econômicas, as quais teriam sempre nas mãos o poder de moldar e manipular as normas morais. Em segundo lugar, a defesa de uma moralidade fundamentada em nossos impulsos e sentimentos morais, traços que fogem às determinações de processos de constituição de moralidades heterônomas instaurados sejam no seio de uma comunidade local, sejam no de uma comunidade nacional. A formulação e a defesa de uma tal moralidade universal requer uma visão mais tranquila quanto ao fato de as imagens de bem e mal diferirem de um lugar para o outro e de um tempo para outro tempo. Afinal, tais imagens têm sido forjadas não a partir da perspectiva do universalismo mais abrangente – aquela que tem como base a própria espécie humana - mas sim a partir de perspectivas circunstanciais, originadas de interesses políticos e econômicos.

Referência

BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus, 1997.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

PRÉ-SOCRÁTICOS - FILOSOFIA DA NATUREZA.


Heráclito e Parmênides


A unidade na diversidade.

Tudo é um (hén panta). A afirmação condensa em três palavras a linha de pensamento que os filósofos pré-socráticos seguiram na tentativa de explicar racionalmente o universo.  Trata-se de uma chave para a interpretação das teorias desses filósofos que, apesar de suas variadas descrições do dinamismo cósmico, compartilham de uma mesma tradição, tendo como pano de fundo para o desenrolar de tal dinamismo uma unidade de onde tudo provém, que a tudo sustenta e onde tudo se esgota. 

A multiplicidade de teorias sobre o cosmos entre os pré-socráticos talvez revele mais sobre a perplexidade e a inquietude destes quanto às transformações físicas que percebemos a todo instante do que, propriamente, quanto a algum resquício de dúvida sobre a existência de uma realidade única. Para eles, esta unidade é dada, praticamente, como certa. O que “incomoda”, portanto, é o vão, o transitório, o perecível do mundo perceptível pelos sentidos, fonte de incertezas e contradições, de aparências que iludem por se mostrarem de forma isolada, particularizada no plano dos entes e nos encobrem o acesso ao que seria a uma verdade eterna e inquestionável.

Heráclito

A afirmação de uma realidade única e absoluta se faz presente até mesmo na teoria do filósofo que mais valorizou o que seria, supostamente, a negação desta realidade: o porvir que se mostra na transitoriedade das coisas do mundo, sempre múltiplas e inconstantes, em permanente oscilação de formas e no perecimento da matéria. Para Heráclito de Éfeso, colocar em evidência as transformações que captamos pelos sentidos - em vez de minimizar ou ignorar a importância desses eventos por considerá-los mera aparência - foi o modo de nos mostrar que o tudo é o emergente. O constante emergir das coisas que nunca se fixam, que seguem num fluxo permanente e inesgotável, nascendo ao mesmo tempo em que morrem é a maneira de ser da realidade única para este filósofo grego. O devir, portanto, é a própria afirmação desta realidade que pode ser simbolizada pelo fogo, elemento primordial e unidade que a tudo consome consumindo-se a si mesma. No plano dos sentidos, iludimo-nos com a sensação de que há alguma permanência ou imutabilidade das coisas que são. É o que Heráclito quer dizer em um de seus fragmentos mais célebres: “Não se pode descer duas vezes ao mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado (...)”. A physis, portanto, revela-se como unidade em permanente mudança, em eterno movimento, instância imutável que se define, paradoxalmente, como eterna transformação.

Ainda de acordo com Heráclito, a realidade suprema é a que não se determina em nenhuma configuração perceptível aos sentidos (não se esgota em nenhuma configuração ôntica). O filósofo compara o Todo à guerra por revelar-se em seu dinamismo próprio como luta entre os opostos, um movimento que a tudo abarca e em que tudo se articula em divergência e convergência. É no fluir constante que se manifesta o logos.  Este dinamismo universal permanece inacessível ao homem comum, cuja visão se esgota na particularidade das coisas vistas isoladamente. Este não alcança a compreensão da unidade articulada da realidade que não se manifesta aos sentidos. Mas este princípio único é inteligível ao ser humano capaz de pensar para pensar o logos como o “todo que está junto”, um todo que se faz presente de maneira a revelar que cada coisa somente é o que é em contínua ligação com tudo o que esta coisa não é. Assim,  totalidade é indeterminação, pois consegue escapar das cadeias que nos prendem à particularidade ilusória dos entes. É este o sentido do que nos diz, no fragmento 89, o pensador de Éfeso: “ser o cosmo, para os acordados, uno e comum (koinón), enquanto, dentre os que dormem, cada qual se volta para seu cosmo particular”.

Parmênides

O pensamento de Parmênides, embora, desde a Antiguidade, seja considerado oposto ao de Heráclito, compartilha com este a mesma espinha dorsal da tradição inaugurada por Tales de Mileto. Tradição assimilada e desenvolvida por Anaximandro que a transmitiu a Xenófanes, mestre de Heráclito e Parmênides. A professora de Filosofia da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Izabela Bocayuva, parte da visão de Heidegger para defender a tese de que as teorias dos discípulos de Xenófanes, em vez de se contraporem radicalmente, a ponto de se negarem ou excluírem uma à outra, são apenas perspectivas diferentes na afirmação de um princípio único de toda a realidade.
A estratégia de Parmênides para decifrar esta realidade suprema é negar a experiência proveniente do plano ôntico mas não no sentido de desconsiderar sua existência. Para o pensador de Eleia, esta negação consiste em não tomar o mundo que se apresenta aos sentidos como aquele em que o todo se esgota, mas sim como fonte de ilusões e de manifestações de particularismos que encobrem o Ser. De acordo com o filósofo, o que os sentidos nos revelam é o que, de alguma forma, tenta negar o todo e afirmar o nada mas tal negação resulta em “fracasso” pois tudo é, mesmo o que se esforça para negar o Ser. O próprio esforço da negação já é algo inserido no dinamismo da totalidade. A multiplicidade dos entes, resultado do que seria uma permanente tentativa de negação do Ser, torna-se uma afirmação deste próprio Ser, ou seja, não há como escapar do Ser, tudo é e não há o não-ser. Cabe a nós, portanto, evitar o caminho do engano desprendendo-nos das percepções que nos iludem ao mostrar-nos apenas a realidade aparente das coisas e que assim nos “tenta” ao não-ser e nos submerge em uma inconstância ilusória entre o Ser e o não-ser, um movimento aparente que encobre a imobilidade do Ser. Imobilidade que não quer dizer estaticidade, que é sinônimo de uma realidade uniabarcante onde todas as formas repousam indeterminadas juntamente com seu infinito dinamismo de possibilidades.     Para alcançarmos o Ser imutável, único, inalterável, ingênito e imperecível, Parmênides recomenda desviarmo-nos do caminho das opiniões que relaciona à inconstância aparente das coisas para seguirmos a única via capaz de nos conduzir à realidade absoluta: a via da verdade sólida que parte do caráter particular dos entes limitados em determinações e vai na direção do Ser do cosmo que não se submete a qualquer forma de determinação, de limitação ôntica. A via da verdade é a via do pensamento racional capaz de revelar o Ser que, conforme a tradição assumida por Parmênides, pode ser atingido com o pensar, já que o pensar é o mesmo que o Ser. Por isso, a sensibilidade habitual, como a visão e a escuta, não é capaz de revelar o Ser mas apenas a linguagem pois o Ser é o único verbo.

Parmênides revelou grande originalidade em relação a seus predecessores, pois, mais que seguidor de uma tradição de pensamento que reelabora, ele interfere nas próprias estruturas da cosmologia, inaugurando algo considerado mais denso e profundo, uma ontologia. Ele afirma o Ser como o único que é e as manifestações ônticas não mais que diversificações limitadas deste mesmo Ser. E vai além: quer fazer da linguagem o instrumento para nomear o Ser em sua pura manifestação.  É a partir daí que, de acordo com Isabela Bocayuva, começou a se desenvolver uma preocupação lógica mesmo que ainda não tenha o sentido do puro formalismo surgido mais tarde.

A sintonia


As teorias de Heráclito e Parmênides que, numa primeira visão, podem parecer completamente opostas, revelam-se parte de uma mesma tradição de pensamento que busca a compreensão do todo universal. Os dois filósofos olharam de maneiras diferentes para a realidade mas ambos se esforçaram para fugir da interpretação superficial e aparente que podemos ter do universo ao levarmos em conta apenas os dados que nos chegam pelos sentidos. Heráclito preferiu apontar como nosso maior engano a sensação que temos de que as coisas permanecem as mesmas. Para ele, os sentidos não são capazes de nos revelar, por exemplo, que até mesmo o diamante, mineral que consideramos o mais sólido, está em permanente mutação. Já Parmênides prefere apontar como ilusão a aparente transformação das coisas do mundo pois, para ele, tais mutações insinuam uma realidade onde há Ser e não-ser, o que, para ele, é um absurdo pois não há o não-ser. Assim, por caminhos diferentes, os dois filósofos afirmam a existência de uma realidade única acessível apenas aos que são capazes de ultrapassar a esfera dos sentidos e pensar com a razão, instância que não recebe as determinações do mundo físico.

ÉTICA EM KANT E HEGEL.

ÉTICA
1-Kant Pensava que as leis morais têm de ser universais e impessoais. Se é correto que eu faça uma determinada coisa, então é correto para qualquer pessoa nas mesmas circunstâncias fazer a mesma coisa.
Como justificar a pretensão de universalidade afirmada por Kant?

Para Kant, a convivência entre seres humanos deve ser mediada por um ethos  formado por princípios racionais que dizem respeito a todos. Tais princípios devem levar em conta o “fato da razão prática” que manifesta o deve-ser  posto sob o domínio de nossa liberdade incondicionada para fazer escolhas e agir de acordo com estas escolhas. O filósofo alemão diz que só agimos moralmente quando isentos de qualquer determinação ou imposição para agir exterior a nós mesmos, estranha à nossa autonomia para decidirmos ou escolhermos por deliberação própria. Isso porque a verdadeira moral tem como pressuposto básico a liberdade que é indissociável da razão prática com a qual estruturamos nossas ações. É por meio da razão livre que percebemos que somos capazes de constituirmo-nos  a nós mesmos, ou seja, de delinearmos nosso telos conforme a orientação que damos à nossa vontade. Descobrimos, assim, que o homem é um fim em si mesmo e que se depara com seus semelhantes ciente de que eles também são portadores do mesmo potencial de liberdade intrínseco á razão. Por isso, a convivência entre seres potencialmente livres deve ser estruturada por normas de convivência que respeitem essa liberdade. Isto só é possível com o exercício permanente da racionalidade reveladora de princípios universais capazes de gerar normas de convivência entre todos os seres racionais.

Portanto, a moral universal é aquela que leva em conta a liberdade individual mas a coloca em permanente tensão com a liberdade de todos os seres humanos, uma vez que, para Kant, precisamos supor uma comunidade de vontades a priori para pensar a liberdade como razão prática. A liberdade só pode ser pensada, então, como relação da liberdade de cada pessoa com todas as outras liberdades individuais.

II-O valor moral de uma conduta depende dos motivos e os motivos são dados pela máxima que o agente aplica ao decidir o que fazer. Como Kant justifica a afirmação acima?

Para saber se deve ou não agir de determinada forma, uma pessoa consciente deve formular para si mesma uma pergunta, ou máxima, cuja resposta irá fornecer os motivos que podem nortear sua conduta. Para saber se as ações orientadas pela resposta serão verdadeiramente morais, é preciso verificar se elas serão ações livres de determinações exteriores à pessoa ou se apenas cederão a impulsos e/ou coações do plano sensível a que estamos sujeitos. Para Kant, as ações morais vão de encontro (no sentido de contrariarem) às determinações comuns ao plano sensível, pois são ações que fazem sobressair o que a humanidade tem de mais peculiar e de mais grandioso: a liberdade. Assim, uma vez que os motivos escolhidos sejam os que levam em conta a liberdade, a ação seguirá os princípios da racionalidade que tende à universalidade ( a racionalidade nos leva à universalidade) pois a liberdade referida por Kant é em seu mais amplo sentido: liberdade que leva em conta o respeito à liberdade de todos e de cada um em particular. A razão, sendo livre em si, não pode prescindir da liberdade.

III- Segundo Hegel, na eticidade há a identidade entre vontade subjetiva e o bem comum, ou seja, há a presença dos momentos de subjetividade e de objetividade.

Explique o que é afirmado acima e tente construir o processo de conciliação entre subjetividade e objetividade.


Hegel sustenta que a eticidade substancializa-se na cultura, instância mediadora de nossa relação com o mundo e com as outras pessoas e onde se dá a dimensão do universal humano. Todos já nascemos, portanto, universalizados porque nascemos no seio de uma cultura. No decurso da vida, entramos em contato com os múltiplos valores transmitidos pela cultura, valores com os quais vamos constituindo nossa própria subjetividade em um processo constante de assimilações, associações, interpretações, expressões, enfim, todo tipo de relação que estabelecemos com o mundo físico e com os outros seres racionais. É por isso que, para Hegel, subjetividade e objetividade não estão isoladas uma da outra como nos fazia pensar a tradição da modernidade. Para ele, a afirmação da subjetividade só ocorre no âmbito da eticidade que se manifesta historicamente. O pensamento hegeliano é circular, pois tem no indivíduo apenas um momento do processo de universalização. Em sua relação com o mundo, o indivíduo abandona sua singularidade e retorna a si mesmo mas nunca no mesmo ponto de partida uma vez que elevou-se no plano da universalidade. Dito de outro modo, a razão (universal) não elimina a esfera do sentimento (subjetiva e restrita ao indivíduo) mas a supera, assume-a, tornando-a inteligível, conceitualizando-a. Graças a esse processo de universalização há a possibilidade de comunicação das consciências. Ao contrário da filosofia kantiana, que considerava o universal como algo transcendente, a filosofia de Hegel concebe o universal como o que emerge historicamente e possibilita o ser do homem. Este, portanto, não é mais o sujeito que constrói por si só a própria subjetividade, como se estivesse separado do mundo em uma posição solipsista que caracterizou a modernidade. Tampouco, para Hegel, a subjetividade que se dá na singularidade do sujeito é eliminada: ela é, sim, parte constituinte do todo da dimensão humana integrado em suas múltiplas contradições. É assim que Hegel supera o dualismo legado pela modernidade. Para o filósofo, individualidade e universalidade não se excluem uma à outra mas são partes de uma mesma dinâmica em que se retroalimentam ou se contradizem, não podendo ser pensadas separadamente.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

FILOSOFIA DA MENTE: ESTADOS DA CONSCIÊNCIA.


CARACTERIZAÇÃO DOS TRÊS ASPECTOS DA CONSCIÊNCIA




Para John Searle, a natureza da consciência possui três aspectos essenciais: é interior, qualitativa e subjetiva.  Há estados de consciência dos mais diversos tipos, desde os que se referem a sensações físicas presentes neste exato momento (a vista ofuscada por uma luz à minha frente, o cheiro do café que acaba de ficar pronto, o roçar em meu rosto da cortina soprada pelo vento) até os provocados por imagens ligadas ao meu passado ou a projeções futuras: desejos e toda diversidade de sentimentos como saudade, angústia ou irritação.  

A internalidade, ou seja, a característica de ser um fenômeno interno, é intrínseca aos estados de consciência da mesma forma que a característica líquida é intrínseca à água ou como a solidez é, necessariamente, propriedade de uma barra de ferro. Isso porque não encontramos estados de consciência fora de um organismo ou de algum outro sistema. Os estados de consciência também são internos no sentido de que cada um deles só é identificável como parte de um todo formado pelos diversos estados de consciência de uma pessoa. Isso quer dizer que um estado de consciência nunca está isolado mas sim posicionado de maneira específica e relacionando-se com cada elemento de uma complexa rede de outros pensamentos, experiências e lembranças. Por sua vez, o sistema de estados mentais inteiro é quem deve ter uma relação com o mundo externo. Assim, estados mentais são ontologicamente participantes de uma sequência de estados conscientes complexos que constituem a vida consciente de uma pessoa.

Diz-se que estados de consciência são qualitativos no sentido de que há um determinado modo de sentir cada um deles. Os modos de sentir são constituídos por suas características qualitativas próprias. O ato de beber vinho, por exemplo, tem um modo próprio ou qualidades que lhe são intrínsecas muito distintas do modo que há no ato andar de bicicleta. Portanto, esses modos múltiplos são percebidos pela consciência  em função de suas qualidades específicas, as quais formam estados desta consciência. Segue-se daí que os modos de sentir de cada pessoa são únicos pois cada um de nós possui sua própria rede de conexões de estados de consciência dependentes uns dos outros, como vimos acima quando nos referimos à internalidade destes estados. Entidades que não são conscientes não possuem modos de ser. Não há um modo de ser uma casa ou uma árvore.

O terceiro e último aspecto da consciência é a subjetividade, no sentido de que é sempre um sujeito quem vivencia a consciência. Diz-se que o modo de existência dos estados de consciência apresenta-se sempre na primeira pessoa porque estes estados só existem a partir do ponto de vista de algum agente, organismo, animal ou pessoa.  Há entidades  que têm um modo de existência na terceira pessoa porque suas existências não dependem de ser experimentadas por um sujeito, são entidades objetivas como montanhas, rios, nuvens e vulcões. Os estados de consciência que experimento são subjetivos porque dependem de mim, sujeito único porque possuidor de uma sequência própria de estados de consciência que constituem minha vida consciente. Por terem consciência, sujeitos humanos ou animais podem experimentar estados cujos modos de existência são subjetivos, como dores, cócegas e coceiras além de pensamentos e sentimentos. É apenas do ponto de vista de um sujeito que uma dor pode ser sentida.





terça-feira, 17 de junho de 2014

FILOSOFIA DA LINGUAGEM.

A LINGUAGEM E O 
OUTRO

1)Georges Gusdorf considera a linguagem um patrimônio coletivo compartilhado entre os homens. É dado a cada um de nós para dele fazermos uso como ponto de encontro entre o eu e os outros. A linguagem torna-se, portanto, o instrumento com o qual lançamos ao mundo nossa subjetividade, tornando-a objetiva por meio de relações que estabelecemos entre as palavras conhecidas por todos. Claro que o caminho inverso, do outro em direção ao eu, também se dá por meio da linguagem comum. Sem ela, o eu e o outro jamais transcenderiam aos limites de seus corpos, ficariam confinados a uma existência sem existencialidade por faltar-lhes meios para a formulação e o compartilhar de sentidos para o mundo.    

Para a compreensão do outro devo considerar a impossibilidade da comunicação plena entre os seres humanos. A expressão mais autêntica de qualquer pessoa sempre vai  esbarrar nas limitações da linguagem. Afinal, só mesmo se cada um de nós inventasse sua própria linguagem, a subjetividade de cada ser humano poderia ser expressa com a maior exatidão possível. No entanto, a multiplicidade ilimitada de linguagens pessoais ao extremo, tornaria impossível a comunicação e não conseguiríamos atingir as subjetividades um do outro. Não haveria um instrumento comum, dominado por todos, que se referisse às coisas que precisamos comunicar para compreendermos e sermos compreendidos. Permaneceríamos, então, na condição de incomunicabilidade a que estão sujeitos os animais. 

Para Gusdorf, a possibilidade de comunicação que é o que lança o homem para fora de si mesmo por saber que será ouvido e entendido (mesmo que não plenamente), é o que nos torna humanos por sermos, comunicativamente, capazes de compreender o outro e a nós mesmos por meio do diálogo, ainda que este diálogo seja interior (com outro que faço de mim, em mim) ou mesmo personificado na Natureza como um alter-ego, como fazem os poetas. Como diz Gusdorf, “a linguagem, desde a sua forma mais rudimentar, atesta uma procissão do ser pessoal no exterior de si próprio”.

Isso quer dizer que o outro é a condição de existência material e intelectual para cada um de nós. Falo para me dirigir ao outro, para me fazer compreender. É no ato de participação na linguagem comum que nos desenvolvemos como seres humanos tornando-nos autônomos ao mesmo tempo em que envolvidos num empreendimento comum a todos os homens. É por meio da linguagem que nos tornamos “senhores do mundo”, significando-o à nossa maneira tornamos manifesta a soberania humana. A palavra humana, com sua rede de significados, nos possibilita abstrairmo-nos da situação momentânea. Permite que esta seja decomposta e perpetuada para que nos distanciemos dela e, na distância e na ausência física das situações condicionadas, tenhamos mais segurança nas análises e nas tomadas de decisões. De acordo com Gusdorf, algo bem diferente se passa com os animais que, por não conhecerem o signo, apenas reagem de forma condicionada às situações que se lhes apresentam. Apenas aderem a uma presença concreta para que possam satisfazer suas necessidades sendo movidos por sinais que se originam de acontecimentos não dominados por eles. Comportamento que tem por única finalidade a adaptação da espécie ao mundo e que são definidos por exigências biológicas de seus organismos.

2) Para Platão, o mundo das Ideias tem uma cópia de si na linguagem, porém não se trata de uma cópia idêntica, mas sim composta por elementos que mantêm relações análogas àquelas que representam, ou seja, análogas às relações entre os princípios que regem o mundo da ideias.  Esta analogia é possível graças à correta proporção estabelecida entre os termos da linguagem e  os termos do mundo ideal. A linguagem só consegue se referir ao mundo das ideias, eterno e imutável, porque se constitui em uma representação proporcional deste. O Mito da Caverna nos fornece um exemplo desta concepção platônica uma vez que, no mito, as sombras que se projetam na parede da caverna não são as coisas mesmas que as originam mas, como toda sombra, preservam as proporções dos objetos reais.   Assim, o filósofo determina o status ontológico da linguagem dentro de uma concepção do Não-Ser como Outro em relação a uma ideia determinada, em vez de uma negação do Ser. As sombras projetadas não são o Ser original mas são algo em si mesmas.

Intérpretes da obra de Platão afirmam que, para o filósofo, a linguagem, além de representar as ideias do mundo eterno também representa o mundo sensível estabelecendo com este, da mesma forma que com o anterior, relações de proporcionalidade. Por isso, a linguagem se constituiria em um intermediário ontológico entre os dois mundos. Como na Matemática, aqui o termo intermediário é o que nos fornece uma medida comum entre dois termos aparentemente opostos. É ele quem une e aproxima os extremos de forma harmoniosa. Na linguagem, a intermediação que obedece à proporcionalidade não tem números como termos mas sim palavras, Ideias e o mundo sensível, ou seja, trata-se de uma analogia simbólica e não numérica. Com sua capacidade harmônica, a linguagem consegue ordenar o real, é capaz, portanto, de nos formar uma imagem da estrutura e dos princípios que organizam o cosmos. Esta concepção nos faz perceber ainda que, para Platão, a linguagem, apesar de ser uma invenção da imaginação humana, não é uma invenção totalmente arbitrária porque reflete a criação artística do demiurgo, mentor do mundo das ideias. Comentaristas de Platão concordam, no entanto, que a linguagem tem uma capacidade limitada em demonstrar os princípios fixos, eternos e imóveis que organizam e tornam o mundo inteligível.

Há pontos coincidentes das teorias da linguagem de Platão e Aristóteles. Para este último, a linguagem é capaz de penetrar no reino das coisas mesmas, extrair de lá as relações recíprocas que elas mantêm umas com as outras e reproduzir estas relações com o uso correto de nomes, verbos e as regras que os associam. Aristóteles concorda que a linguagem faz referência ao real que fica além dela mesma e além da Lógica. Portanto, assim como em Platão, em Aristóteles a linguagem mantém com o ser uma identidade e uma diferença, um pertencimento ao ser sendo distante dele. Por meio dela, o ser se torna uma ausência que está presente. Neste sentido, as concepções dos dois filósofos vão de encontro à dos sofistas que reconheciam na linguagem apenas a função persuasiva com a qual buscavam a maior eficiência possível dos discursos. Em vez de considerarem a linguagem como um caminho possível de aproximação com a verdade, os sofistas  defendiam a teoria imanentista que afirma que a linguagem não é capaz de nos remeter para algo além e distinto dela mesma. Aristóteles considerou insuficiente a reação de seu mestre aos sofistas pois, para ele, Platão apenas recorreu ao mito e tentou ridicularizar ou apontar contradições  entre eles mesmos, os sofistas. Comentaristas contemporâneos afirmam que Platão encobriu a verdadeira essência da linguagem ao sustentar que as ideias estariam acima das palavras. Ao contrário de Platão, para quem a linguagem seria mímesis da criação do demiurgo, Aristóteles afirma que o ser-no-mundo é quem possui a mímesis criadora em seu horizonte. Paul Ricoeur afirma que a mimesis de Aristóteles  está na “verdade do imaginário e no poder de detecção ontológica da poesia”. 

quinta-feira, 5 de junho de 2014

A TEORIA CRÍTICA DA ESCOLA DE FRANKFURT.

OS FRANKFURTIANOS NA VISÃO DE OLGÁRIA MATOS.

Ao tratar do conteúdo programático da Teoria Crítica, Bárbara Freitag diz que “O fio vermelho que trespassa a obra de todos os autores é o tema do Iluminismo ou Esclarecimento”. Já em Kant, o “Esclarecimento (Aufklärung) significa a saída do homem de sua minoridade”; é a conquista da maioridade, da liberdade, da autonomia, através do uso público da razão. Porém, para os frankfurtianos, essa perspectiva otimista que vê no desenvolvimento da razão um processo que está a serviço da liberdade e da emancipação da humanidade, não apreende que a razão se atrofiou e no curso de sua história transformou-se em “razão instrumental". Seria a "razão instrumental" a causa do que Olgária Matos denominou de "pessimismo" dos Frankfurtianos em relação ao futuro da humanidade? Explique. Na leitura que faz das fases por que passou a Teoria Crítica, Olgária Matos identifica um pessimismo crescente dos frankfurtianos com a possibilidade de a Razão garantir a emancipação humana da forma como acreditavam os iluministas. O crescendo pessimista passa pela constatação de que o interesse emancipatório que se dá na experiência histórica e que deveria partir do proletariado não ocorreu. Isso por causa do desconhecimento em que se encontram os trabalhadores, o que os  impossibilita de serem ao mesmo tempo parte da realidade sócio-econômica e  sujeitos da práxis revolucionária.  Para os frankfurtianos, é improvável que o trabalho alienado seja  fator de desalienação social. Assim, de acordo com Olgária Matos, o processo histórico acabou revelando uma das maiores falhas da teoria marxista: a descrição ambígua da relação Sujeito e Objeto, hora identificando-os um com o outro, hora acentuando um absoluto dualismo.
O pessimismo frankfurtiano culmina na fase considerada por Abensour como a terceira  da Teoria Crítica. Nesta, a racionalização tomada pelos iluministas como emancipadora passa a ser denunciada como racionalização repressora do real. Constata-se, então, uma  ruptura profunda com a ideia hegeliana de progresso da história e com a tese marxista de um telos imanente que conduz à sociedade sem classes. Para os frankfurtianos, o risco de se acreditar numa tal necessidade histórica, é o da racionalização do sofrimento, ou seja, de se considerar como consequência necessária da evolução da Razão todas as injustiças passadas e os sofrimentos das gerações que já desapareceram. As certezas devem ceder lugar a uma concepção de História como processo descontinuo, sempre em aberto que, por isso mesmo, não garante identidade a grandes temas e/ou conceitos filosóficos como Natureza,  Cultura,  Matéria e, principalmente, a Razão.
Para a Teoria Crítica, a ausência desta concepção de História e, em vez dela, a crença nos desígnios necessários da racionalidade, levaram o marxismo a uma visão atrofiada da razão humana pelo que esta visão tem de absolutizante, totalizante e redutora. Dois dos sinais mais evidentes deste equívoco foram a passiva adaptação dos intelectuais aos proletários e a veneração religiosa pelo que seria a criatividades destes. Tais atitudes, que enfraqueceram ao invés de fortalecer os operários, acabaram por contribuir para o que pode ser considerada uma “trapaça” da Razão histórica: o absoluto esperado revelou-se não como o fim da sociedade de classes, destino inexorável da humanidade, mas como sociedade de total administração que, no dizer de Horkheimer, “(...) permite que alguém cometa todas as atrocidades possíveis sem sentir-se responsável; (...)”, uma denúncia flagrante do nazismo e do estalinismo, regimes que foram exemplos extremos do modelo de pensamento burocrático.      
A forma como a razão instrumental é capaz de se manifestar na História, portanto, dá aos frankfurtianos bons motivos para serem pessimistas quanto ao futuro da humanidade. Diante deste sentimento, porém, os filósofos da Teoria Crítica não pregam a resignação e a passividade, antes consideram a revisão teórica  arma fundamental para nos tornar capazes de assumir as rédeas da Razão e praticar novas atitudes políticas que visam, principalmente, fortalecer a individuação, antagônica da sociedade altamente administrada. Um dos caminhos para isso, seria, de acordo com Walter Benjamin, evitar que o pessimismo se transforme em uma espécie de dogmatismo, trocando-o por uma atitude melancólica de esquerda pois o melancólico é aquele que é capaz de preservar a memória individual e de conservar as esperanças cultivadas no passado.