A universalidade ilusória
A moralidade autêntica não é
instância que se submete a moldes ou manipulações por parte de poderes
instituidores de códigos éticos. Escapa, como água por entre os dedos, a toda
tentativa de determinação forçada. No entanto, o homem parece não estar disposto
a abrir mão das tentativas de encontrar o código ético por excelência, que,
julgando-se expressão definitiva de nossa natureza, poria fim a todos os
dilemas morais. Esta foi a busca implementada pela modernidade, na qual
caminhamos com passos por sobre tábuas de salvação de novos códigos,
abandonadas uma após a outra tão logo percebemos que a água já encobre nossos
pés.
Mais do que ninguém, os filósofos
sabem da condição relativa dos códigos éticos, os quais não escapam da
temporalidade histórica. É por isso que, para Zygmunt Bauman, as imagens de bem
e de mal que partilhamos não duram mais do que o tempo do consenso que nos
permite alguma estabilidade social, algum sentido de conjunto temporário. Para
homens e mulheres absorvidos em suas tarefas cotidianas, é provável que não
haja paralisantes inquietações quanto ao que devem ou não fazer. Parecem
satisfazer-se em agir conforme aquilo que o grupo espera de cada um, tendo a
garantia de que fazem o que é aprovado pelas pessoas que compartilham daquele
mesmo espaço e “momento histórico de eticidade”. É algo que tranquiliza a
consciência saber que os “iguais a nós” teriam feito o mesmo ou quase o mesmo
que fizemos, tendo à disposição a mesma reduzida escala de graus de uma mesma
opção.
A tranquilidade da consciência,
portanto, é grande devedora da sensação ou crença da universalidade das normas
morais em vigor. Por isso, inquietações sempre hão de sobrar para filósofos
encarregados da manutenção de tal crença, uma vez que a ela é que se vincula a
obediência da maioria. Convencida por filósofos quanto à universalidade das
normas, as pessoas dificilmente se questionam quanto à relatividade das mesmas,
pois desconhecem que outras pessoas em outros tempos e lugares, portadoras de
noções distintas das fronteiras entre o bem e o mal, tomariam decisões
inteiramente diferentes das suas. Mas esse desconhecimento não diminui a
necessidade de que o poder de persuasão dos filósofos seja forte o bastante
para estar à altura da carga de incertezas, ansiedades e medos de homens e
mulheres quanto ao futuro. São sentimentos e emoções capazes de fazer emergir a
crise dos valores ao escoar a credibilidade de códigos construídos e mantidos
por artifícios de retórica e da força.
A necessidade de grandes esforços
retóricos deriva, em muito, da incapacidade em lidar de forma tranquila com a
diversidade de formas de se encarar o bem e o mal. Segundo Bauman, poucos
autores foram como Montaigne que escreveu sobre isso de forma resignada e
equânime. As diferenças, na maioria dos casos, são vistas com horror, como
supremo absurdo a desafiar o pensador pela permanente ameaça que representa às
conquistas do mundo civilizado. A saída para o dilema da diversidade de
concepções sobre bem e mal, tem sido quase sempre a mesma: afirmar a verdade como
sendo única por definição e, por consequência, também a retidão e os preceitos
morais. É preciso, portanto, afirmar com todas as letras que outras normas são
não apenas diferentes mas também erradas e más e que são aceitas apenas por
ignorância, imaturidade ou por má-vontade,
acusações que servem de escada pela qual se eleva a autoridade das normas
morais defendidas.
Além da negativação das normas
alheias, os defensores da moralidade que se sabe apenas mais uma entre tantas,
precisam, é claro, embasar seus argumentos em alguma forma de positividade. O
mais usual tem sido atribuir às normas que defendem uma superioridade que seria
garantida pelo estágio evolutivo presente, ponto de culminância do processo
constante de aperfeiçoamento da humanidade ao longo do tempo. Dessa forma, temporaliza-setoda e qualquer alteridade
feita pelo homem, inclusive a alteridade ética. Tudo o que dentro das normas em
uso se apresenta como contraditório, dissonante, ou que não responde
adequadamente aos desafios e necessidades históricas é considerado mero
obstáculo passageiro, algo a que a evolução saberá dar conta. A temporalização
atesta ainda que outras formas de moralidade são como relíquias que dilataram
seu tempo, sendo praticadas por quem já está de fato morto, como cadáver
insepulto que permanece inconvenientemente instalado na ante-sala da era
moderna.
A maneira de lidar com qualquer
presença de contundente negação da norma é o menosprezo. Por esta via, tudo que
ameaça os princípios de coerência e congruência, marca profissional dos
filósofos, é tomado como pura aberração. Claro que, para ter a anuência das
pessoas quanto a isso, é preciso que estes mesmos princípios da lógica
filosófica tenham sido incutidos nas mentes dos que estiverem sob a jurisdição
da norma ou mesmo que neles já estejam projetados os interesses de poderosos
locais. Poderosos que, para defenderem suas próprias ambições, usam como
embuste bandeiras universalistas. A
difusão das formas de raciocínio coerente é tarefa preponderante de todo
filósofo comprometido com a justificação das normas pois trata-se de uma forma
de pensar que tende à previsibilidade, característica comportamental valiosa
para todo e qualquer governante que exerce o poder em nome de sua própria
vontade.
A crença dos arautos da modernidade
de que possuíam uma ordem moral superior e mais avançada no tempo
transformou-se em sólida convicção, passando a ser usada como justificativa
para nações-estado imporem-se sobre outras. Afirmavam ser impulsionadas pela
causa enobrecedora de fazer a civilização espalhar-se pelo globo. A alteridade
cultural projetada sobre a seta do tempo, forjava a visão do outro como
estagnado no passado, sempre associado ao que ainda não evoluiu ou
aperfeiçoou-se. A estas relíquias incongruentes destinadas à extinção, a
história não reserva outra saída a não ser a subordinação àqueles capazes de
difundir o conhecimento que leva à mudança para o melhor.
As inquietações do universalismo.
Como discurso moldado para legitimar
o poder estatal, o universalismo encontrou adversários postos tanto como força
centrípeta de implosão, como força centrífuga de dissolução de sua vontade.
Como representante da primeira, uma coleção heterogênea de paroquianos,
parentes e outros habitantes locais; como agenciadores da segunda, filósofos de
boa-fé para quem o autêntico postulado da universalidade põe abaixo não só as
atribuições morais de comunidades locais, transformadas em unidades
administrativas da nação-estado, como também a autoridade moral reivindicada
pelo estado. Foram adversários que se postaram contra todo e qualquer projeto
universalizante que revelasse as ambições convenientemente uniformizantes para
estado moderno
Para os comunais, a prática moderna
de universalização manifestou-se como força de opressão, ato de violência
praticado contra a liberdade humana, ultraje e ofensa esmagadora de culturas
estabelecidas por sucessivas gerações. Seus costumes locais foram
ridicularizados e relegados ao plano das superstições que resistiam ao poder
centralizador, tendo que, por isso, ser condenadas à morte. Ligadas que estavam ao tempo e ao território,
as culturas localizadas foram envergadas por duros golpes de espada de certos
princípios universais que exigem que normas morais passem pelo crivo da
extratemporalidade e da extraterritorialidade.
O golpe, no entanto, produziu também
estragos no mesmo ponto de onde partiu. Ao mesmo tempo em que se impunha por
meio da honrosa alegação de alojar-se no cerne da natureza humana, o código
moral estatal desmascarava-se a si mesmo ao limitar sua abrangência aos
territórios sujeitos a determinada influência política ou reivindicados por
esta. Pregava, portanto, uma universalidade natimorta pelo fato de
circunscrever-se às fronteiras da nação-estado, contradição de origem que se
revela como expressão de interesses apenas diversos dos interesses de
lideranças locais. Afinal, a parcialidade implícita em códigos com validades
delimitadas por fronteiras os exclui por completo da qualidade de universais.
Que argumentos, então, poderiam ser usados para fazer com que membros de
comunidades locais adquirissem visão mais ampla e facilitadora da substituição
de um código moral por outro? Como
convencê-los a elevar seu ponto de vista a um plano superior e mais abrangente,
imparcial, crítico de costumes enraizados e livre de pressões comunais. Por que
deveriam desatrelar-se de lealdades e particularismos comunais e aceitar a
submissão ao modelo de cidadania arquitetado pelo estado?
Também para os universalistas de
boa-fé, as práticas universalizantes dos estados são inaceitáveis. Para eles, é
nulo o princípio aristotélico da política como instância primeira de gestação
do humano. O autêntico postulado da universalidade, portanto, destoa de toda e
qualquer comunidade política autodeterminada, seja ela de âmbito local ou
nacional. A exigência universalista é sempre direcionada contra a polis, uma vez que esta, como recurso de
autoafirmação, sempre defende a particularidade de seus membros em relação aos
membros de outras polis. O outro, a
alteridade localizada além das próprias fronteiras, contrapõe-se ao eu
“situado” que se julga membro da comunidade cuja moral seria a universalmente
válida, uma oposição capaz de suscitar intolerâncias recíprocas. Para os
universalistas mais exigentes, a moralidade verdadeira se radica apenas em
qualidades e capacidades possuídas por indivíduos enquanto pessoas humanas. O
que for contrário a isso não passa de falso código moral, proclamado por
poderes bem mais estreitos que o universal. Consideram códigos morais surgidos
de interesses grupais ou em nome de “suprema sabedoria grupal” como instâncias
de conspiração entre caudilhos atacados de ganância pelo poder.
Pregam os filósofos de boa fé que um
poder, para ser universalista de fato, deve ser capaz de identificar a
população que está (ou que pode vir a estar) sob sua administração com a
espécie humana em sua totalidade. Porém,
uma tal perspectiva de condução do poder tem pouquíssima probabilidade de ser
levada a cabo num mundo em que as agências que promovem o universalismo não
detém uma soberania que seja verdadeiramente universal. Na realidade desenhada
pelo mundo moderno ainda em vigor, as fronteiras dos estados é que delimitam o
horizonte universalista. Com isso, o forma-se um emaranhado de autoridades que
se consideram detentoras de padrões universais de moralidade, diversidade de
posições que põe sob suspeita o valor de cada uma das ditas
universalidades.
Neste cenário de “universalidades”
circunscritas a diferentes domínios limitados por fronteiras entre vizinhos,
cria-se a solidariedade entre os governantes, o que possibilita que cada um
deles, reconhecendo os demais como soberanos e respeitando os limites
territoriais das jurisdições, governe de acordo com as leis proclamadas em seu
território. É esta solidariedade que serve de base para a formação de um novo
modelo de normas morais que possibilita a convivência entre as nações e entre
os povos. Segundo Bauman, a exemplo do ocorrido no interior de cada estado, as
normas morais supra-estatais também são promulgadas segundo o padrão da lei
universal mas acabam por assemelhar-se a normas de relações internacionais.
Tornam-se, portanto, um arrazoado de diplomacia, barganhas e busca de “pontos
de consenso” genuínos ou fictícios. No final das contas, a universalidade
supra-estatal acaba por ter pouco de raízes comuns e muito de denominador
comum. Não há como esconder a evidência de que existem várias concepções de
moralidade universal e que somente a superioridade da força de um dos poderes
permite que sua concepção prevaleça sobre as outras.
Para Zygmunt Bauman, códigos de
moralidade supranacionais são mais uma forma de conceituação processual de
universalização, um tipo de conceituação que serve de último abrigo ao sonho de
universalidade como destino último da espécie humana. Foi este o abrigo que
ofereceu segurança à afirmação de que a “marcha do tempo” nos levará,
irremediavelmente, à universalização: confiança tão grande no futuro como
portador do remédio para todos os males, que é capaz de toldar os olhos para a
realidade das contradições que se apresentam no projeto universalista moderno.
Não foi à toa que Diderot nos chamou a atenção para a enorme crença que o homem
moderno depositou nos tempos que estão por vir, atribuindo a estes a capacidade
de corrigir todas as injustiças do presente e considerando-os como estuários de
um movimento que caracteriza a própria humanidade, o movimento das qualidades
que desafiam cada um dos seres humanos. Foi uma confiança que se alimentou da
imaginação e da fantasia, forças humanas capazes de se espalhar livremente no campo
fértil do porvir sem terem que se incomodar com
experimentações empíricas.
Coube à fase pós-moderna a destruição
de toda essa crença que se tornou característica fundamental da era moderna. Na
pós-modernidade, o que se apresenta dentro do contexto da historiosofia da
universalização é a chamada globalização. Esta, no entanto, não envolve a busca
de unidade entre as autoridades políticas, culturais e morais. Os fatores que
se supõem “globalizar” são considerados mais não-nacionais que inter- ou
supra-nacionais, fatores como a difusão
global da informação, da tecnologia e interdependência.
A ideia de moralidade universal,
depois de despedir-se da fundamentação na “missão civilizadora” das
nações-estados que se proclamavam mais desenvolvidas ou mais avançadas
culturalmente, se é que deva sobreviver, só pode ter como pontos de apoio em
fatores que são inerentes à espécie humana: os impulsos morais e pré-sociais,
anteriores, portanto, a todo e qualquer resultado comum ao processamento
social, produtos derivados de ações legisladora, ordenadora e educadora.
No campo de batalha em que nos deparamos
com pluralidade nova ou renovada de desafios morais, estão à espreita os comunitários, adversários dos pregadores
do universalismo e que oferecem como alternativa um já familiar refúgio cômodo
e acolhedor da “comunidade nativa”. Esta
é a alternativa que resta aos universalistas que sucumbirem na batalha ao aceitarem
como eterno e irremediável fato a persistência da pluralidade de soberanias
políticas e econômicas. Uma aceitação que pode ser considerada como posição
conformista e contrária à persistência na promoção de uma moralidade distante
de determinações grupais ou estatais mas ligada à totalidade da espécie humana,
posição que exige forte resistência por estar ancorada no território frio e
abstrato dos valores morais universais.
Considerações finais.
No campo de batalha em que se trava a
luta por hegemonias de concepções morais, os defensores de uma moralidade que
se ancora na pessoa humana têm como adversários tanto os grupos chamados
comunais, defensores do eu “situado”, como as organizações políticas estatais. Ambos
são portadores de concepções destrutivas do universalismo proclamado pelos
filósofos de boa-fé: os comunais porque o tomam como ultrajante violação de
direitos, veículo de opressão e de violência contra a liberdade; as
organizações políticas estatais porque restringem e congelam a perspectiva
universalizante no interior das fronteiras nacionais para atender a interesses
políticos. Ao contrário do que é pregado pelos universalistas, as nações-estado
particularizam seus membros frente aos de outras nações, propagando entre seus
indivíduos a crença em sua unidade e semelhança que os opõe aos estrangeiros, tomados
como outros diferentemente situados por estarem enraizados em outras polis.
Segundo Bauman, a alternativa
restante para os universalistas de boa-fé é, em primeiro lugar, o não conformismo
em relação às crenças que consideram irremediável e sem fim a existência de
pluralidades de soberanias políticas e econômicas, as quais teriam sempre nas
mãos o poder de moldar e manipular as normas morais. Em segundo lugar, a defesa
de uma moralidade fundamentada em nossos impulsos e sentimentos morais, traços
que fogem às determinações de processos de constituição de moralidades
heterônomas instaurados sejam no seio de uma comunidade local, sejam no de uma
comunidade nacional. A formulação e a defesa de uma tal moralidade universal
requer uma visão mais tranquila quanto ao fato de as imagens de bem e mal
diferirem de um lugar para o outro e de um tempo para outro tempo. Afinal, tais
imagens têm sido forjadas não a partir da perspectiva do universalismo mais
abrangente – aquela que tem como base a própria espécie humana - mas sim a partir
de perspectivas circunstanciais, originadas de interesses políticos e
econômicos.
Referência
BAUMAN,
Zygmunt. Ética pós-moderna. São
Paulo: Paulus, 1997.