terça-feira, 17 de junho de 2014

FILOSOFIA DA LINGUAGEM.

A LINGUAGEM E O 
OUTRO

1)Georges Gusdorf considera a linguagem um patrimônio coletivo compartilhado entre os homens. É dado a cada um de nós para dele fazermos uso como ponto de encontro entre o eu e os outros. A linguagem torna-se, portanto, o instrumento com o qual lançamos ao mundo nossa subjetividade, tornando-a objetiva por meio de relações que estabelecemos entre as palavras conhecidas por todos. Claro que o caminho inverso, do outro em direção ao eu, também se dá por meio da linguagem comum. Sem ela, o eu e o outro jamais transcenderiam aos limites de seus corpos, ficariam confinados a uma existência sem existencialidade por faltar-lhes meios para a formulação e o compartilhar de sentidos para o mundo.    

Para a compreensão do outro devo considerar a impossibilidade da comunicação plena entre os seres humanos. A expressão mais autêntica de qualquer pessoa sempre vai  esbarrar nas limitações da linguagem. Afinal, só mesmo se cada um de nós inventasse sua própria linguagem, a subjetividade de cada ser humano poderia ser expressa com a maior exatidão possível. No entanto, a multiplicidade ilimitada de linguagens pessoais ao extremo, tornaria impossível a comunicação e não conseguiríamos atingir as subjetividades um do outro. Não haveria um instrumento comum, dominado por todos, que se referisse às coisas que precisamos comunicar para compreendermos e sermos compreendidos. Permaneceríamos, então, na condição de incomunicabilidade a que estão sujeitos os animais. 

Para Gusdorf, a possibilidade de comunicação que é o que lança o homem para fora de si mesmo por saber que será ouvido e entendido (mesmo que não plenamente), é o que nos torna humanos por sermos, comunicativamente, capazes de compreender o outro e a nós mesmos por meio do diálogo, ainda que este diálogo seja interior (com outro que faço de mim, em mim) ou mesmo personificado na Natureza como um alter-ego, como fazem os poetas. Como diz Gusdorf, “a linguagem, desde a sua forma mais rudimentar, atesta uma procissão do ser pessoal no exterior de si próprio”.

Isso quer dizer que o outro é a condição de existência material e intelectual para cada um de nós. Falo para me dirigir ao outro, para me fazer compreender. É no ato de participação na linguagem comum que nos desenvolvemos como seres humanos tornando-nos autônomos ao mesmo tempo em que envolvidos num empreendimento comum a todos os homens. É por meio da linguagem que nos tornamos “senhores do mundo”, significando-o à nossa maneira tornamos manifesta a soberania humana. A palavra humana, com sua rede de significados, nos possibilita abstrairmo-nos da situação momentânea. Permite que esta seja decomposta e perpetuada para que nos distanciemos dela e, na distância e na ausência física das situações condicionadas, tenhamos mais segurança nas análises e nas tomadas de decisões. De acordo com Gusdorf, algo bem diferente se passa com os animais que, por não conhecerem o signo, apenas reagem de forma condicionada às situações que se lhes apresentam. Apenas aderem a uma presença concreta para que possam satisfazer suas necessidades sendo movidos por sinais que se originam de acontecimentos não dominados por eles. Comportamento que tem por única finalidade a adaptação da espécie ao mundo e que são definidos por exigências biológicas de seus organismos.

2) Para Platão, o mundo das Ideias tem uma cópia de si na linguagem, porém não se trata de uma cópia idêntica, mas sim composta por elementos que mantêm relações análogas àquelas que representam, ou seja, análogas às relações entre os princípios que regem o mundo da ideias.  Esta analogia é possível graças à correta proporção estabelecida entre os termos da linguagem e  os termos do mundo ideal. A linguagem só consegue se referir ao mundo das ideias, eterno e imutável, porque se constitui em uma representação proporcional deste. O Mito da Caverna nos fornece um exemplo desta concepção platônica uma vez que, no mito, as sombras que se projetam na parede da caverna não são as coisas mesmas que as originam mas, como toda sombra, preservam as proporções dos objetos reais.   Assim, o filósofo determina o status ontológico da linguagem dentro de uma concepção do Não-Ser como Outro em relação a uma ideia determinada, em vez de uma negação do Ser. As sombras projetadas não são o Ser original mas são algo em si mesmas.

Intérpretes da obra de Platão afirmam que, para o filósofo, a linguagem, além de representar as ideias do mundo eterno também representa o mundo sensível estabelecendo com este, da mesma forma que com o anterior, relações de proporcionalidade. Por isso, a linguagem se constituiria em um intermediário ontológico entre os dois mundos. Como na Matemática, aqui o termo intermediário é o que nos fornece uma medida comum entre dois termos aparentemente opostos. É ele quem une e aproxima os extremos de forma harmoniosa. Na linguagem, a intermediação que obedece à proporcionalidade não tem números como termos mas sim palavras, Ideias e o mundo sensível, ou seja, trata-se de uma analogia simbólica e não numérica. Com sua capacidade harmônica, a linguagem consegue ordenar o real, é capaz, portanto, de nos formar uma imagem da estrutura e dos princípios que organizam o cosmos. Esta concepção nos faz perceber ainda que, para Platão, a linguagem, apesar de ser uma invenção da imaginação humana, não é uma invenção totalmente arbitrária porque reflete a criação artística do demiurgo, mentor do mundo das ideias. Comentaristas de Platão concordam, no entanto, que a linguagem tem uma capacidade limitada em demonstrar os princípios fixos, eternos e imóveis que organizam e tornam o mundo inteligível.

Há pontos coincidentes das teorias da linguagem de Platão e Aristóteles. Para este último, a linguagem é capaz de penetrar no reino das coisas mesmas, extrair de lá as relações recíprocas que elas mantêm umas com as outras e reproduzir estas relações com o uso correto de nomes, verbos e as regras que os associam. Aristóteles concorda que a linguagem faz referência ao real que fica além dela mesma e além da Lógica. Portanto, assim como em Platão, em Aristóteles a linguagem mantém com o ser uma identidade e uma diferença, um pertencimento ao ser sendo distante dele. Por meio dela, o ser se torna uma ausência que está presente. Neste sentido, as concepções dos dois filósofos vão de encontro à dos sofistas que reconheciam na linguagem apenas a função persuasiva com a qual buscavam a maior eficiência possível dos discursos. Em vez de considerarem a linguagem como um caminho possível de aproximação com a verdade, os sofistas  defendiam a teoria imanentista que afirma que a linguagem não é capaz de nos remeter para algo além e distinto dela mesma. Aristóteles considerou insuficiente a reação de seu mestre aos sofistas pois, para ele, Platão apenas recorreu ao mito e tentou ridicularizar ou apontar contradições  entre eles mesmos, os sofistas. Comentaristas contemporâneos afirmam que Platão encobriu a verdadeira essência da linguagem ao sustentar que as ideias estariam acima das palavras. Ao contrário de Platão, para quem a linguagem seria mímesis da criação do demiurgo, Aristóteles afirma que o ser-no-mundo é quem possui a mímesis criadora em seu horizonte. Paul Ricoeur afirma que a mimesis de Aristóteles  está na “verdade do imaginário e no poder de detecção ontológica da poesia”. 

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