DISCURSO DO MÉTODO
QUARTA
PARTE
Descartes mostra
os fundamentos das suas meditações metafísicas. Primeiramente, rejeita como falso tudo aquilo em que pode
supor a menor dúvida. Os sentidos não são fontes seguras de conhecimento porque muitas vezes
nos enganam. Razões demonstrativas também não seguras, já que muitos homens cometem
paralogismos. Outra situação que gera desconfiança é o fato de podermos supor
que todas as coisas que entram em nosso espírito possam ser como as ilusões dos
sonhos. No entanto, mesmo que todas as coisas sejam falsas, eu necessariamente,
penso. Se penso, sou alguma coisa: penso,
logo existo. Este é o princípio que Descartes considera o mais sólido para
sua filosofia, pois não pode ser abalado por qualquer suposição dos céticos.
Podemos supor que não possuímos corpo e que não há mundo ou lugar algum mas
nunca podemos supor que não existimos. Mesmo o fato de duvidar da verdade das
coisas atesta minha existência. Por isso, o eu é uma substância cuja essência
ou natureza consiste no pensar e não precisa ou depende de lugar algum ou de
qualquer coisa material. A alma é distinta do corpo e é mais fácil de conhecer
do que ele.
Depois de
encontrar uma proposição que julga ser verdadeira e correta, Descartes quer
saber em que consiste essa certeza. Descobre que a regra geral para essas
proposições é a de que devem ser claras e distintas. Outro objetivo de
Descartes é tentar descobrir de onde aprendera a pensar em algo mais perfeito
do que ele já que ele duvidava das coisas e a dúvida revela imperfeição. O
conhecer é a perfeição que se contrapõe à dúvida. Nossa natureza, diz
Descartes, também possui alguma perfeição. Em vista disso, ele diz que podemos julgar
como verdadeiros pensamentos sobre muitas coisas que estão fora de nós, como o
céu, a Terra, a luz, etc. Se estes são verdadeiros, são dependências de nossa natureza.
Se são pensamentos falsos, existiriam pelo que possuímos de falho. No que se
refere à ideia de um ser mais perfeito do que o nosso próprio ser, não é
possível fazê-la sair do nada e é até repulsiva a ideia de que o mais perfeito
dependa do menos perfeito. Por isso, é impossível sair de nós mesmos a ideia de
um ser mais perfeito. Tal ideia, portanto, só pode ter sido colocada em nós por
uma natureza superior e que possui todas as perfeições de que tenhamos ideia:
Deus.
Descartes deduz
que não é o único ser existente visto que admite conhecer perfeições que não tem.
Se recebeu dele mesmo esse pouco com o qual participa do Ser perfeito, por que
não receberia o restante que lhe falta para ser perfeito: eternidade,
imutabilidade, onisciência, poder absoluto, infinitude e todas as demais
perfeições que percebemos existirem em Deus? Este raciocínio nos leva a pensar
a natureza de Deus como aquela que
podemos conhecer considerando se é perfeição ou não possuir qualquer ideia
existente em nós mesmos. Assim, dúvida, inconstância, tristeza e outras ideias
como estas marcadas pela imperfeição, não existem Nele. Todas as outras ideias
marcadas pela perfeição, estas sim, existem Nele. Além do mais, a respeito das
coisas sensíveis e corporais, não podemos negar que as ideias que presumimos
serem falsas existam em nosso pensamento. E, se Descartes já havia reconhecido
que as naturezas inteligente e corporal são distintas e que toda composição
pressupõe dependência e que a dependência é uma falha, então, Deus, por ser perfeito,
não pode ser composto dessas duas naturezas. Daí que outros corpos, inteligências ou naturezas
que porventura existam sem serem totalmente perfeitos, sejam seres que dependem
do poder de Deus e que não subsistem sem Ele.
Depois disso, Descartes
quis buscar mais verdades e examinou algumas das demonstrações mais simples dos
geômetras. Concluiu que a grande certeza das afirmações se alicerça somente na evidência
com que são concebidas mas nada nelas garante, de fato, a existência de seus objetos.
A ideia de um ser perfeito, porém, inexoravelmente, inclui sua existência, assim como, necessariamente,
num triângulo, seus três ângulos serão
iguais a dois retos. A existência de Deus é tão certa quanto qualquer demonstração
geométrica.
As ideias de Deus
nunca estiveram nos sentidos, por isso a dificuldade que as pessoas têm de
conhecê-lo. Mesmo os filósofos têm essa dificuldade quando acreditam que tudo o
que existe em nosso entendimento, antes passou pelos sentidos. Sabemos, entretanto,
que nossos sentidos e nossa imaginação não nos podem garantir coisa alguma sem
a intervenção de nosso juízo. Usar a imaginação para compreender Deus é o mesmo
que tentar ouvir os sons ou sentir os
odores utilizando-se dos olhos. Quem não
se convence da existência de Deus com esses argumentos, está ainda menos certo de
que possui um corpo e de que existam astros e a Terra. A certeza moral dessas
coisas é de tal ordem que só mesmo sendo extravagantes podemos duvidar de sua
existência. Mas, quanto à certeza metafísica, é motivo suficiente para estarmos
inseguros o fato de que muitos pensamentos que nos surgem em sonhos são mais
vívidos do que os que temos acordados. Mesmo os grandes espíritos conseguem
dirimir essas dúvidas apenas quando presumem a existência de Deus. Nossas ideias ou noções quando são verdadeiras
e distintas são oriundas de Deus. Verdade ou perfeição não se originam do nada.
Já as ideias que contém falsidade assim o são porque não somos totalmente perfeitos.
Falsidade ou imperfeição não se originam de Deus. Só depois de termos a certeza dessa regra
graças ao conhecimento de Deus, compreendemos que os sonhos não devem levar-nos
a duvidar da verdade dos pensamentos que temos quando despertos. Uma ideia clara e distinta pode ocorrer mesmo
quando dormimos. As ideias podem nos enganar estejamos dormindo ou acordados. Por
isso, despertos ou mergulhados no sono, só devemos deixar-nos convencer pela
evidência de nossa razão. Os sentidos nos enganam quando enxergamos o sol
pequeno mesmo não julgando que seja do tamanho que o vemos. A imaginação pode
criar um leão com corpo de bode mas não acreditamos por isso na existência de
uma quimera. Isso ocorre porque a razão nos sugere que todas as nossas ideias
ou noções devem conter algum fundamento de verdade. Deus, que é todo perfeito e
verídico, não as teria colocado em nós sem isso.
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