quarta-feira, 10 de abril de 2013

A HISTÓRIA DE DEUS.

A história de Deus: negado, afirmado ou justificado pela Filosofia.


Este texto pretende ser uma introdução às diversas concepções de Deus que, originando-se nas religiões, foram sendo incorporadas ou retrucadas pela Filosofia desde a Antiguidade até a Modernidade, com Renè Descartes e Immanuel Kant.



As religiões sempre representaram, para os homens, importantes suportes existenciais por conferirem sentido ao que eles não compreendem. O ser humano frágil, impotente e maravilhado diante das surpreendentes forças e transformações do universo, encontrou no sagrado formas de lidar com a realidade que o cerca. Pode-se dizer que o sagrado é uma criação humana que, longe de fazer parte de uma realidade puramente abstrata, desconectada da experiência e da materialidade mundanas, constitui-se num instrumento da intelecção para a ação dos homens no mundo. Uma tal afirmação mostra-se mais veraz ao examinarmos o papel desempenhado pelos mitos nas mais diversas civilizações. É neste exame que percebemos a capacidade dos mitos de influenciar na formação de identidades culturais que possibilitam a criação e a permanência da coesão social. A relação do sagrado com as circunstâncias práticas e afetivas humanas não anula a sua peculiar posição estrutural em nossa forma de conceber o mundo, qual seja, uma posição desvinculada da temporalidade que a tudo e a todos afeta e consome. Por isso, foi no espaço do sagrado que o homem primeiro conduziu seu pensamento para alinhavar a pluralidade de questões que lhe suscitavam interesse e admiração. Nele, o imediatismo das relações com as coisas e com os outros fica suspenso, abrindo caminho para um voltar-se sobre si mesmo e para um olhar distanciado do mundo, uma atitude reflexiva que envolve ponderação, cálculo, imaginação e demais formas de raciocínio presididas por uma ontologia divinizada, o mundo dos deuses. Não é à toa que o próprio Aristóteles confessa que ‘o amante dos mitos (philomytós) também, em certo sentido, é o amante da sabedoria (philosophós)’ já que o mito se baseia no assombro e na admiração ante a realidade desde as quais os homens começaram a filosofar. 
 
O exposto até aqui nos introduz a um dos mais importantes pontos comuns entre Religião e Filosofia. Já as religiões mais primitivas, como a Filosofia mais tarde, criaram sistemas de interpretação com os quais o homem exercitou sua capacidade de raciocinar e elaborar o mundo. Assim, pôde o homem não viver no mundo apenas de forma passiva e como um eterno estrangeiro, assombrado e desterrado. É provável que, no decorrer da história dos povos, a capacidade interpretativa dos mitos tenha sido questionada pelos que nela encontraram limitações, falhas e contradições, mas foi preciso surgir a civilização e o momento histórico adequados para que as dúvidas silenciadas ganhassem voz e abrissem o caminho para uma nova forma de pensar. Foi com os gregos que o cosmos e o ethos estruturados pela religião começaram a ser dessacralizados em favor de explicações alcançadas por meio da observação e da reflexão livres e de uma convenção cultural e moral que atingiu seu auge com os sofistas. Os primeiros filósofos esforçaram-se na busca de um fundamento racional que pudesse explicar a origem e as leis que presidem o universo. Estas questões que sempre se apresentaram nas mitologias e se mantiveram como problemáticas na Filosofia são exemplos da herança temática legada aos pensadores gregos. Dentro de tal herança, levanta-se a contraposição da necessidade do destino (moira) e da liberdade de escolha humana. Quanto à liberdade humana, pode-se dizer que Sócrates foi o primeiro a considerá-la possível ao afirmar que o homem é capaz de formular e conduzir o seu projeto de vida, ideia que desafiava as posições mais tradicionais da cultura arcaica grega. O determinismo dos mitos tomava o homem como inserido num eterno e inexorável processo de realização do destino e considerava inócuas as tentativas humanas de se contrapor a ele. O que subjaz de uma tal perspectiva é a valorização do que é ordenado e estável e, por isso, deve servir de parâmetro para a organização social, uma ideia que inspirou a concepção da pólis de Platão. A certeza da existência de uma força ordenadora do caos tornou-se a mais importante projeção da estrutura mitológica de compreensão do universo sobre a Filosofia. É ela quem conduz à ideia da unidade (não aparente) que existe por trás de toda multiplicidade do real. Tal força, que seria o deus primordial e criador para os mitólogos é definida pelos filósofos como o princípio racional (arché), a causalidade eficiente que origina todas as coisas, razão suficiente e necessária de tudo.
A transição do pensamento mitológico para o filosófico não se deu de forma pacífica, como se se tratasse de uma passagem que pudesse ser naturalmente entendida como parte de um processo evolutivo para um novo estágio do pensamento humano. Muitos dos primeiros filósofos, os físicos, deixaram bem claro suas críticas a qualquer forma de revelação divina, optando por investigar a realidade só pela luz da razão. Isso, apesar de suas doutrinas manterem importantes correspondências estruturais com as mitologias, conforme exposto acima. Coube a filósofos posteriores, como Platão, contemporizar tais críticas, absorvendo conteúdos mitológicos como meio de explicação de suas teorias racionais. Por cerca de dois mil anos prevaleceram de forma hegemônica, na Filosofia, as doutrinas com bases de inspiração originárias dos mitos e que consideram ser possível revelar, pelo intelecto, a causa primordial e unidade totalizadora do universo. É este o campo de estudos que passou a ser denominado Metafísica e está presente, por exemplo, nos sistemas platônico - que propõe uma divindade como origem e sentido do universo – e aristotélico - que sustenta a existência de um motor imóvel, o divino imaterial que é causa incausada do universo. O deus dos filósofos é um deus despersonalizado, tido como uma força cósmica e racional mas abriu margem para interpretações futuras que o personificaram e o revestiram de sacralidade, como foi o caso da filosofia escolástica. 
 
A partir do século XIV a Metafísica entra em crise a reboque do declínio do Império e da Igreja Católica, instituições que balizaram as leis e os costumes durante toda a Idade Média. A entrada definitiva da Filosofia na Modernidade, no entanto, deu-se cerca de três séculos mais tarde, a partir dos escritos de Renè Descartes (1596-1650). Foi ele quem deslocou o horizonte da investigação filosófica que até então priorizava a busca do conhecimento de Deus, considerado o conhecimento último e perfeito. Descartes começa por questionar a própria validade do conhecimento humano, buscando demarcar seus limites e aferir a consistência de seus resultados. Ele ainda determina como objetivos da investigação filosófica a interpretação do mundo e o estudo de si próprio, o que representa um rompimento inequívoco com a escolástica medieval por dar prioridade ao universo mundano, profano e laico em contraposição à primazia teológica defendida pelos filósofos medievais. Descartes não prescinde da existência de Deus mas não se interessa pela busca do Ser transcendente. Considera Deus apenas uma força infinita, eterna e imutável que garante o funcionamento do universo de forma regular e organizada, permitindo, assim, a produção de todas as coisas que existem. Trata-se, ainda, de um Deus impessoal que serve de fundamento metafísico para o conhecimento racional humano. Ao contrário dos escolásticos que apontavam o Ser Divino como princípio radical e causa de tudo no universo, Descartes defendia que o Eu-penso e o Eu-sou concluem as indagações sobre a realidade ontológica e a esfera gnosiológica. A substituição do tema Deus pelo tema Homem representou uma retomada do modo de filosofar dos primeiros filósofos gregos que optaram pela razão como meio de desvelar o universo, desconsiderando as revelações divinas. 
 
O ceticismo de David Hume (1711-1776) representou um duro golpe à Metafísica que já passava por uma crise sem soluções com o desenvolvimento acelerado das ciências. O filósofo inglês atestou que nenhuma experiência empírica poderia provar a existência de Deus, sendo, portanto, impossível aos homens conhecê-Lo. Com isso, desacreditou as pretensões humanas de chegar ao conhecimento de qualquer realidade metafísica. Immanuel Kant (1724-1804) procurou contornar o ceticismo de Hume. Ele concordou que a razão crítica ou pura é incapaz de produzir provas da existência de Deus, mas também não é capaz de negá-la. Defendeu a existência de uma outra forma de racionalidade que pode nos levar ao conhecimento de Deus. Kant chama o princípio desta racionalidade de razão prática, capaz de gerar a consciência moral, atividade que o filósofo alemão considera tão presente nos homens quanto o conhecimento científico. A consciência moral se forma por meio da vontade que torna o homem mais que um ser que é e o faz também um ser que deve ser. Dessa vontade é que surgem os predicados morais como bom, mal, justo e injusto que nos levam à concepção de um bem supremo que só existe como síntese de felicidade e virtudes. Para Kant, este bem supremo é Deus, fundamento e condição mesma da possibilidade moral e da felicidade. A palavra Deus deve ser entendida não como revelação divina mas como imperativo moral que temos dento de nós e que atende à nossa própria formulação do que seja o bem. Podemos, portanto, ser autônomos na construção de nossa conduta moral desde que sejamos capazes de fazer ou deixar de fazer algo com base em nossa própria escala de valores, orientadora da vontade, e não por coação ou imposição de regras formuladas exteriormente a nós.




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