A história de Deus: negado, afirmado ou justificado pela Filosofia.
Este texto pretende ser uma introdução às diversas concepções de Deus que, originando-se nas religiões, foram sendo incorporadas ou retrucadas pela Filosofia desde a Antiguidade até a Modernidade, com Renè Descartes e Immanuel Kant.
As religiões sempre
representaram, para os homens, importantes suportes existenciais por
conferirem sentido ao que eles não compreendem. O ser humano frágil,
impotente e maravilhado diante das surpreendentes forças e
transformações do universo, encontrou no sagrado formas de lidar
com a realidade que o cerca. Pode-se dizer que o sagrado é uma
criação humana que, longe de fazer parte de uma realidade puramente
abstrata, desconectada da experiência e da materialidade mundanas,
constitui-se num instrumento da intelecção para a ação dos
homens no mundo. Uma tal afirmação mostra-se mais veraz ao
examinarmos o papel desempenhado pelos mitos nas mais diversas
civilizações. É neste exame que percebemos a capacidade dos mitos
de influenciar na formação de identidades culturais que
possibilitam a criação e a permanência da coesão social. A
relação do sagrado com as circunstâncias práticas e afetivas
humanas não anula a sua peculiar posição estrutural em nossa forma
de conceber o mundo, qual seja, uma posição desvinculada da
temporalidade que a tudo e a todos afeta e consome. Por isso, foi no
espaço do sagrado que o homem primeiro conduziu seu pensamento para
alinhavar a pluralidade de questões que lhe suscitavam interesse e
admiração. Nele, o imediatismo das relações com as coisas e com
os outros fica suspenso, abrindo caminho para um voltar-se sobre si
mesmo e para um olhar distanciado do mundo, uma atitude reflexiva que
envolve ponderação, cálculo, imaginação e demais formas de
raciocínio presididas por uma ontologia divinizada, o mundo dos
deuses. Não é à toa que o próprio Aristóteles confessa que ‘o
amante dos mitos (philomytós)
também, em certo sentido, é o amante da sabedoria (philosophós)’
já que o mito se baseia no assombro e na admiração ante a
realidade desde as quais os homens começaram a filosofar.
O exposto até aqui nos
introduz a um dos mais importantes pontos comuns entre Religião e
Filosofia. Já as religiões mais primitivas, como a Filosofia mais
tarde, criaram sistemas de interpretação com os quais o homem
exercitou sua capacidade de raciocinar e elaborar o mundo. Assim,
pôde o homem não viver no mundo apenas de forma passiva e como um
eterno estrangeiro, assombrado e desterrado. É provável que, no
decorrer da história dos povos, a capacidade interpretativa dos
mitos tenha sido questionada pelos que nela encontraram limitações,
falhas e contradições, mas foi preciso surgir a civilização e o
momento histórico adequados para que as dúvidas silenciadas
ganhassem voz e abrissem o caminho para uma nova forma de pensar. Foi
com os gregos que o cosmos e o ethos
estruturados pela religião começaram a ser dessacralizados em favor
de explicações alcançadas por meio da observação e da reflexão
livres e de uma convenção cultural e moral que atingiu seu auge com
os sofistas. Os primeiros filósofos esforçaram-se na busca de um
fundamento racional que pudesse explicar a origem e as leis que
presidem o universo. Estas questões que sempre se apresentaram nas
mitologias e se mantiveram como problemáticas na Filosofia são
exemplos da herança temática legada aos pensadores gregos. Dentro
de tal herança, levanta-se a contraposição da necessidade do
destino (moira)
e da liberdade de escolha humana. Quanto à liberdade humana, pode-se
dizer que Sócrates foi o primeiro a considerá-la possível ao
afirmar que o homem é capaz de formular e conduzir o seu projeto de
vida, ideia que desafiava as posições mais tradicionais da cultura
arcaica grega. O determinismo dos mitos tomava o homem como inserido
num eterno e inexorável processo de realização do destino e
considerava inócuas as tentativas humanas de se contrapor a ele. O
que subjaz de uma tal perspectiva é a valorização do que é
ordenado e estável e, por isso, deve servir de parâmetro para a
organização social, uma ideia que inspirou a concepção da pólis
de Platão.
A certeza da existência de uma força ordenadora do caos tornou-se a
mais importante projeção da estrutura mitológica de compreensão
do universo sobre a Filosofia. É ela quem conduz à ideia da unidade
(não aparente) que existe por trás de toda multiplicidade do real.
Tal força, que seria o deus primordial e criador para os mitólogos
é definida pelos filósofos como o princípio racional (arché),
a causalidade eficiente que origina todas as coisas, razão
suficiente e necessária de tudo.
A transição do pensamento
mitológico para o filosófico não se deu de forma pacífica, como
se se tratasse de uma passagem que pudesse ser naturalmente entendida
como parte de um processo evolutivo para um novo estágio do
pensamento humano. Muitos dos primeiros filósofos, os físicos,
deixaram bem claro suas críticas a qualquer forma de revelação
divina, optando por investigar a realidade só pela luz da razão.
Isso, apesar de suas doutrinas manterem importantes correspondências
estruturais com as mitologias, conforme exposto acima. Coube a
filósofos posteriores, como Platão, contemporizar tais críticas,
absorvendo conteúdos mitológicos como meio de explicação de suas
teorias racionais. Por cerca de dois mil anos prevaleceram de forma
hegemônica, na Filosofia, as doutrinas com bases de inspiração
originárias dos mitos e que consideram ser possível revelar, pelo
intelecto, a causa primordial e unidade totalizadora do universo. É
este o campo de estudos que passou a ser denominado Metafísica e
está presente, por exemplo, nos sistemas platônico - que propõe
uma divindade como origem e sentido do universo – e aristotélico -
que sustenta a existência de um motor imóvel, o divino imaterial
que é causa incausada do universo. O deus dos filósofos é um deus
despersonalizado, tido como uma força cósmica e racional mas abriu
margem para interpretações futuras que o personificaram e o
revestiram de sacralidade, como foi o caso da filosofia escolástica.
A partir do século XIV a
Metafísica entra em crise a reboque do declínio do Império e da
Igreja Católica, instituições que balizaram as leis e os costumes
durante toda a Idade Média. A entrada definitiva da Filosofia na
Modernidade, no entanto, deu-se cerca de três séculos mais tarde, a
partir dos escritos de Renè Descartes (1596-1650). Foi ele quem
deslocou o horizonte da investigação filosófica que até então
priorizava a busca do conhecimento de Deus, considerado o
conhecimento último e perfeito. Descartes começa por questionar a
própria validade do conhecimento humano, buscando demarcar seus
limites e aferir a consistência de seus resultados. Ele ainda
determina como objetivos da investigação filosófica a
interpretação do mundo e o estudo de si próprio, o que representa
um rompimento inequívoco com a escolástica medieval por dar
prioridade ao universo mundano, profano e laico em contraposição à
primazia teológica defendida pelos filósofos medievais. Descartes
não prescinde da existência de Deus mas não se interessa pela
busca do Ser transcendente. Considera Deus apenas uma força
infinita, eterna e imutável que garante o funcionamento do universo
de forma regular e organizada, permitindo, assim, a produção de
todas as coisas que existem. Trata-se, ainda, de um Deus impessoal
que serve de fundamento metafísico para o conhecimento racional
humano. Ao contrário dos escolásticos que apontavam o Ser
Divino
como princípio radical e causa de tudo no universo, Descartes
defendia que o Eu-penso
e o Eu-sou
concluem
as indagações sobre a realidade ontológica e a esfera
gnosiológica. A substituição do tema Deus
pelo tema Homem
representou uma retomada do modo de filosofar dos primeiros filósofos
gregos que optaram pela razão como meio de desvelar o universo,
desconsiderando as revelações divinas.
O ceticismo de David Hume
(1711-1776) representou um duro golpe à Metafísica que já passava
por uma crise sem soluções com o desenvolvimento acelerado das
ciências. O filósofo inglês atestou que nenhuma experiência
empírica poderia provar a existência de Deus, sendo, portanto,
impossível aos homens conhecê-Lo. Com isso, desacreditou as
pretensões humanas de chegar ao conhecimento de qualquer realidade
metafísica. Immanuel Kant (1724-1804) procurou contornar o ceticismo
de Hume. Ele concordou que a razão crítica ou pura é incapaz de
produzir provas da existência de Deus, mas também não é capaz de
negá-la. Defendeu a existência de uma outra forma de racionalidade
que pode nos levar ao conhecimento de Deus. Kant chama o princípio
desta racionalidade de razão prática, capaz de gerar a consciência
moral, atividade que o filósofo alemão considera tão presente nos
homens quanto o conhecimento científico. A consciência moral se
forma por meio da vontade que torna o homem mais que um ser
que é e o
faz também um ser
que deve ser.
Dessa vontade é que surgem os predicados morais como bom, mal, justo
e injusto que nos levam à concepção de um bem supremo que só
existe como síntese de felicidade e virtudes. Para Kant, este bem
supremo é Deus, fundamento e condição mesma da possibilidade moral
e da felicidade. A palavra Deus deve ser entendida não como
revelação divina mas como imperativo moral que temos dento de nós
e que atende à nossa própria formulação do que seja o bem.
Podemos, portanto, ser autônomos na construção de nossa conduta
moral desde que sejamos capazes de fazer ou deixar de fazer algo com
base em nossa própria escala de valores, orientadora da vontade, e
não por coação ou imposição de regras formuladas exteriormente a
nós.
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